O escritor Kurt Vonnegut é celebrado nos dez anos de sua morte

ALEXANDRE RODRIGUES

RESUMO Morto em 2007, o escritor Kurt Vonnegut é tido como um dos expoentes da literatura americana do século 20. Autor de "Matadouro 5" tinha na ironia e no sentimentalismo duas de suas marcas. Antes de virar escritor, alistou-se para lutar na Segunda Guerra, trabalhou como repórter e foi vendedor de carros.

Eram os anos 1950. Kurt Vonnegut (1922-2007) foi trabalhar como repórter da revista "Sports Illustrated" e recebeu a missão de cobrir uma prova de hipismo. O futuro autor de "Matadouro 5" acompanhou a prova, voltou para a Redação e, por horas, encarou a máquina de escrever. Finalmente datilografou "o cavalo pulou a porra da cerca", entregou ao editor e foi embora para nunca mais voltar.

O mau humor sugerido pelo episódio é condizente com o temperamento delineado em uma biografia lançada após a sua morte. O livro o retrata como um homem amargurado, imagem que não parece encontrar eco entre leitores e fãs que lembraram, no dia 11 de abril, os dez anos da morte de um escritor americano essencial da segunda metade do século 20.

Para marcar a data, uma série de eventos literários ocorreu em Indianápolis, cidade natal de Vonnegut, onde foi reinaugurado há pouco um museu dedicado a sua obra.

Ele também está nos palcos americanos com o musical "God Bless You, Mr. Rosewater", adaptação do romance que lançou nos anos 1960 (editado no Brasil como "A Felicidade Rosewater"), com músicas de Alan Menken, compositor vencedor de dois Oscar. E é lembrado em dois documentários com lançamento programado para este ano, um deles o já lendário "Unstuck in Time" ("Solto no tempo"), cuja realização consumiu 35 anos.

Kurt Vonnegut Jr. (mais tarde, quando o pai morreu, ele dispensaria o Jr.) nasceu em 11 de novembro de 1922. Filho de imigrantes alemães, cresceu durante a Grande Depressão, nos anos 1930. A pobreza vista na juventude influenciaria sua obra, marcada pelo humanismo e pela ideia de que os EUA haviam traído a si mesmos.

Depois de se formar em química, no começo dos anos 1940, e de se casar com Jane Cox, uma aspirante a escritora, entrou para o Exército para lutar na Segunda Guerra Mundial.

Encerrado o conflito, voltou para casa e publicou alguns contos, mas, com esposa e três filhos, recorreu a outros empregos para manter a família: vendedor de carros usados, redator de textos técnicos da General Electric e, finalmente, repórter.

DISTOPIA

Seu primeiro romance foi publicado em 1952. "Revolução no Futuro" (Artenova), uma distopia em torno do fim dos empregos, é premonitório sobre os efeitos na sociedade da substituição de trabalhadores por máquinas. Já trazia alguma das marcas do chamado "estilo Vonnegut", principalmente a ironia e o sentimentalismo.

Fãs do autor, no entanto, costumam apontar uma série de romances e contos publicados a partir de 1959 como seu auge.

Naquele ano, ele lançou "As Sereias de Titã" (GRD), seguido, em 1961, de "O Espião Americano" (Artenova), sobre um agente americano que finge se alinhar a Hitler e acaba preso como nazista em Israel.

O excelente "Cama de Gato" (1963; Record) é uma sátira amalucada à corrida armamentista, explorando os temas da tecnologia, da ciência e da religião. Foi seguido de "A Felicidade Rosewater" (1965; Artenova), a respeito de uma cidade cujos habitantes são sustentados por um bilionário.

O universo de quase todos os livros é o Meio-Oeste americano, onde ele mesmo foi criado, e seus habitantes. Nenhum virou best-seller. Os críticos torciam o nariz, insistindo em classificá-lo como um autor de ficção científica.

Vonnegut quase desistiu da literatura. Em 1965, com diferença de um dia, morreram Judith, irmã do escritor, e o marido dela. O casal deixou três filhos, que o autor adotou. Agora eram seis rebentos sob sua guarda. Com família tão grande, impossível seguir produzindo.

Salvou-o um emprego de professor no prestigiado curso de escrita da Universidade de Iowa. Lá, desenvolveu o "romance de Dresden", que mudaria sua vida.

ECOS DA GUERRA

Lançado em 1969, "Matadouro 5" (L&PM) é um dos livros mais influentes da segunda metade do século 20. Ambientado ao mesmo tempo na Alemanha nazista, nos EUA do final dos anos 1960 e em um planeta chamado Trafalmador, lida com as dolorosas memórias que Vonnegut guardava da Segunda Guerra.

Durante uma batalha, ele foi feito prisioneiro pelos alemães e levado para a cidade de Dresden, então uma relíquia com construções antigas conhecida como a Florença do Elba, mas prestes a ser atacada pelos exércitos aliados.

O episódio é uma das maiores controvérsias do conflito. Historiadores divergem sobre a necessidade do ataque a uma cidade conhecida pela vida cultural e quase sem importância militar. De nada adiantou: Dresden foi bombardeada e incendiada entre 13 e 15 de fevereiro de 1945. Estima-se que 135 mil civis tenham morrido.

Vonnegut sobreviveu por ter se abrigado em um matadouro de animais, o matadouro nº 5. Nos dias e semanas seguintes, ajudou na retirada dos corpos carbonizados de dentro das casas, ouvindo ofensas dos sobreviventes. Levou mais de 20 anos para escrever sobre a experiência, mas, quando o fez, em tom sombrio, descartou o heroísmo dos filmes de guerra.

"Matadouro 5" era algo impensável para a época: uma sátira sobre o nazismo. A história de Billy Pilgrim, um soldado desengonçado e incapaz que durante um combate descobre estar "solto no tempo", faz o leitor viajar pela vida do personagem, visitando episódios passados e futuros.

Em meio à contestação à Guerra do Vietnã, a comédia antimilitarista captou o espírito do tempo, assim como "Ardil 22", de Joseph Heller, outro romance sobre o conflito. Metaficção, narrativas paralelas, absurdo, pessimismo e humor negro são ali instrumentos para Vonnegut questionar nosso lugar no mundo. Nascia com os leitores uma relação muitas vezes emocional.

Muito disso vem da cumplicidade que pauta a construção narrativa. São comuns nas obras do autor introduções em que ele explica as ideias do livro e de onde as tirou.

Na contramão da corrente de escritores que deixam à leitura a explicação dos romances, o americano abria os seus com explanações detalhadas. Autor e leitor não raro compartilham segredos, como o fato de que "Pastelão" (1975) foi inspirado na dupla de comediantes o Gordo e o Magro.

"Em poucos casos, dentro do que traduzi até hoje, fui afetada emocionalmente pelas histórias. Com o KV [Kurt Vonnegut], várias vezes me vi rindo ou chorando muito", diz a gaúcha Cássia Zanon, tradutora de "Matadouro 5" e "Café da Manhã dos Campeões" para a L&PM.

SUCESSO

A vida do escritor mudou completamente com "Matadouro 5". Com o sucesso, o casamento com Jane Cox chegou ao fim, e ele foi viver em Nova York. Sentia-se acossado não apenas pela guerra mas também por uma depressão crônica.

Segundo uma biografia póstuma, "So It Goes" (St. Martin's Griffin, 2011), ele era dado a ataques de raiva, sendo lembrado por amigos e conhecidos como "cruel, desagradável e assustador".

"Café da Manhã dos Campeões" (L&PM), lançado em 1973, encerra sua fase mais criativa. O encontro entre Kilgore Trout (alter ego de Vonnegut) –um escritor fracassado– e Dwayne Hoover –um vendedor de carros usados– é narrado de forma fragmentada, como se o leitor nada soubesse da humanidade. Foi um fracasso de crítica e de vendas.

Ele continuou a escrever, mas as obras já não tinham a mesma vitalidade. Sua popularidade, contudo, jamais declinou. Vonnegut fez pontas em alguns filmes, como "De Volta às Aulas" (1984) e "Vítima do Passado" (1996) –esse último uma adaptação do romance "O Espião Americano". Casado novamente, agora com a fotógrafa Jill Krementz, tornou-se um intelectual ativo politicamente.

Ao escrever um perfil dele em 1982, o britânico Martin Amis ironizou: "Quando o sucesso acontece com um escritor inglês, ele adquire uma nova máquina de escrever. Quando o sucesso acontece com um escritor americano, ele adquire uma vida nova".

Em 1997, após lançar seu último romance, "Timequake", Vonnegut declarou estar se aposentando. Em 2004, contudo, lançaria "Um Homem sem Pátria" (Record), coletânea de textos políticos. Ainda haveria um último livro de ficção, "Deus o Abençoe, Dr. Kevorkian" (2008; Record), reunindo pequenas entrevistas imaginárias com figuras históricas, como Hitler e o físico Isaac Newton. Numa espécie de despedida, entrevistou também Kilgore Trout, seu alter ego.

HIT NA INTERNET

Seu impacto na cultura pode ser medido pela repercussão da sua morte, em 2007, dias depois de sofrer um acidente doméstico.

Segundo o site Technorati, que mede o fluxo de informações na internet, seu nome foi o terceiro termo mais citado no mundo naquele dia. Dez anos depois, um dos vídeos em que ele usa gráficos para discutir a estrutura das histórias tem mais de 1 milhão de visualizações no YouTube.

A própria crítica chegou a um acordo. Hoje, é corriqueiro encontrá-lo, com Thomas Pynchon e Donald Barthelme (1931-89), em listas dos principais autores do pós-modernismo americano, movimento marcado pela experimentação.

O interesse por sua obra tende a ser reavivado com os eventos marcados para este ano. O mais esperado certamente é o lançamento do documentário "Unstuck in Time".

Em 1982, Robert Weide, então estudante, convenceu o escritor a dar uma série de entrevistas e a ser filmado no cotidiano. Por falta de dinheiro, o projeto foi seguidamente interrompido, até Weide, diretor de episódios da aclamada série cômica "Curb your Enthusiasm", arrecadar US$ 300 mil em um financiamento on-line. A ideia é que o filme estreie ainda em 2017.

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No museu e biblioteca Kurt Vonnegut, em sua cidade natal, o acervo recém-ampliado inclui um sem-fim de objetos pessoais, como a máquina de escrever usada para datilografar seus romances, um dos famosos maços de cigarros Pall Mall, a estrela púrpura por bravura na Segunda Guerra e a carta recebida do pai quando ele era prisioneiro dos alemães. Como se o autor de "Matadouro 5" ainda estivesse vivo, o envelope continua lacrado.

ALEXANDRE RODRIGUES, 50, é jornalista e escritor, autor de "Veja se Você Responde Essa Pergunta" (Não Editora) e escreve "Maldito Frio", seu primeiro romance.

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