Com Alexa, Amazon quer ser 'Google' do comando de voz

LESLIE HOOK
RICHARD WATERS
TIM BRADSHAW
DO "FINANCIAL TIMES", EM SAN FRANCISCO

Quando a Amazon lançou o Alexa, seu sistema inteligente de assistência doméstica que opera por meio de comando de voz, a empresa tinha acabado de passar por um embaraçoso fracasso. Sua tentativa de transformar em sucesso um smartphone chamado Fire se provou um fiasco, causando prejuízos de US$ 170 milhões em 2014. Analistas definiram o aparelho como um dos piores celulares já fabricados.

O fim do celular Fire parecia ter destruído as esperanças da Amazon de desenvolver uma plataforma móvel própria. Em um momento no qual a Apple tinha o iPhone e a Alphabet, seu onipresente serviço de buscas, a Amazon estava desesperada para encontrar maneiras de atingir os consumidores diretamente, sem ter de recorrer à plataforma de qualquer rival no campo da tecnologia.

Embora pouca gente esperasse, naquele momento, a porta de entrada que a Amazon havia buscado com o celular Fire veio a se abrir para o Alexa. Em vez de os usuários interagirem com uma tela, todo o controle do sistema Alexa acontece por voz.

O produto inicial do sistema Alexa, o alto-falante inteligente Echo, foi lançado apenas duas semanas depois do cancelamento do Fire e se tornou o primeiro alto-falante controlado por voz a conquistar grande público. Nos dois anos transcorridos desde o lançamento, o uso do Alexa se expandiu rapidamente, e o serviço de voz agora está integrado a dezenas de produtos —entre os quais refrigeradores e, em breve, carros.

A Amazon espera que o Alexa Voice Services, a mente digital por trás do assistente digital, se torne onipresente para todas as formas de comando por voz.

A companhia já havia conquistado sucesso em áreas improváveis de negócios no passado, mais notavelmente com a Amazon Web Services (AWS), sua divisão de serviços de computação em nuvem. Lançada 10 anos atrás, a AWS tirou vantagem do seu pioneirismo e agora é a maior fornecedora mundial de serviços de computação em nuvem.

Reproduzir esse sucesso com o Alexa não será fácil, mas a Amazon já está dedicando grandes recursos ao esforço. Para encorajar a adoção, a empresa vende seus aparelhos Alexa abaixo do custo, adotando preços entre 10% e 20% mais baixos que o custo do hardware, de acordo com uma estimativa da Evercore. A empresa nunca revelou o número de aparelhos habilitados para o sistema Alexa que já vendeu.

A Amazon também fornece acesso livre ao Alexa Voice Services, o que significa que desenvolvedores podem integrá-lo a qualquer aparelho dotado de alto-falante e microfone. E existe o Alexa Fund, que oferece verbas a desenvolvedores para que trabalhem em novos aplicativos para a plataforma.

A empresa vem injetando recursos no Alexa cada vez mais rápido. A Evercore estima que a Amazon tenha sofrido perdas de cerca de US$ 330 milhões com o Alexa em 2016, incluídos os prejuízos líquidos com os aparelhos e os custos de pessoal —o montante deve quase dobrar e ultrapassar os US$ 600 milhões neste ano. A Amazon está anunciando mais de 500 vagas em sua equipe Alexa, em um esforço de expansão —também prometeu criar 100 mil empregos novos, a maioria dos quais suas centrais de logística, até a metade de 2018 nos Estados Unidos.

O imperativo estratégico é claro: o Alexa permite que a empresa domine os sistemas operacionais em uma nova mídia, o comando por voz.

"É como tentar se tornar o Google dos sistemas de voz ou o Windows dos sistemas de voz", disse Mark Mahaney, analista do banco RBC. "Creio que a Amazon esteja carregando esse mercado."

CARRO E CASA

Ele aponta para dois lugares em que interações de voz são especialmente convenientes: o carro e a casa. Na casa, a Amazon pode reforçar sua conexão com os consumidores e, claro, facilitar para eles as compras na Amazon e o acesso à Amazon Music.

Essa presença domiciliar se enquadra ao recente esforço para expandir seu serviço de venda de mantimentos, Amazon Fresh. "É como o cavalo de Troia que a Amazon está usando para entrar nas geladeiras", disse Mahaney. Ele estima que até 10 milhões de aparelhos equipados com o Alexa tenham sido vendidos no quarto trimestre de 2016.

Essas oportunidades diretas de varejo são apenas parte do quadro, no entanto. Ser dona do sistema de comando por voz mais popular do mercado a coloca em situação poderosa, permitindo que controle o acesso ao mercado por aplicativos de terceiros e adquira muitos dados sobre os consumidores.

Até agora, a Amazon adotou uma abordagem aberta quanto a apps, ou, no jargão da empresa, "skills", de terceiros integrados ao Alexa. O sistema permite acesso aos serviços de música Spotify e Pandora, ainda que eles sejam concorrentes diretos do serviço de música da Amazon. Os clientes também podem usar o Alexa para pedir pizzas na rede Domino's —ainda que esta concorra diretamente com o serviço de comida delivery da Amazon em muitas cidades.

Essa abordagem vem facilitando as coisas para empresas que planejam formar parcerias com o Alexa. A montadora de automóveis Ford teve tarefa fácil quando chegou a hora de escolher uma parceira de tecnologia de grande porte com a qual criar uma aliança: bastava escolher uma empresa que não concorresse diretamente com ela.

Esse foi o arrazoado por trás do anúncio pela empresa, na semana passada, de que o Alexa será usado em seus carros a partir da metade deste ano. O arranjo foi uma grande vitória para o Alexa, e lhe valeu espaço no painel dos carros pela primeira vez. Também confirma a vantagem inicial da companhia sobre Google e Microsoft na corrida por levar os agentes inteligentes comandados por voz a toda espécie de aparelho.

Talvez ainda mais importante seja o que a aliança com a Ford pode dizer sobre a futura competição: a companhia de comércio eletrônico está encontrando portas abertas entre os fabricantes de hardware, que a veem como parceira neutra, em um momento no qual as ambições do Vale do Silício lançam sombras sobre diversos setores.

Crédito: Rick Wilking/Reuters Mike George, VP da Amazon para Alexa, Echo e aplicativos, durante palestra na CES 2017
Mike George, VP da Amazon para Alexa, Echo e aplicativos, durante palestra na CES 2017

O QUE AS EMPRESAS QUEREM?

Há outras companhias do setor automotivo que se sentem como a Ford. "É mais difícil trabalhar com alguém quando você não compreende os seus objetivos", disse Carlos Ghosn, presidente-executivo da Nissan e Renault, em referência à Apple e Alphabet.

A Amazon, por outro lado, deixou muito claras as suas intenções; "Algumas empresas já decidiram —empresas como a Amazon e o Uber—, e você quer trabalhar com elas porque sabe para onde estão indo", disse Ghosn. "E elas estão indo para um lugar que não é ameaça para você".

A Amazon também aprendeu a arte —importantíssima para uma empresa que cria plataformas de tecnologia— de expandir seu ecossistema ao facilitar a incorporação do Alexa a outros produtos.

"Vimos o Alexa se tornar um ecossistema muito mais robusto do que era dois anos atrás", disse John Rhee, diretor para a América do Norte da UBTech, fabricante de robôs humanoides que na semana passada anunciou integração ao Alexa.

Com o uso livre e gratuito do assistente de voz acrescentando uma nova dimensão aos seus produtos, fabricantes de hardware como a UBTech vêm aprovando o uso de seus produtos pela Amazon para estender o alcance do comércio eletrônico da empresa a novos lugares. Tanto a Ford quanto a UBTech, por exemplo, disseram que acrescentar itens a uma lista de compras —e direcionar as vendas à Amazon— será algo natural para seus consumidores quando estiverem falando com o Alexa. "É simbiótico", disse Rhee.

No entanto, é cedo demais para dizer se o sucesso inicial da Amazon com o Alexa dará uma abertura à empresa para venda de gama mais ampla de serviços da AWS. A Ford, por exemplo, usa o serviço de nuvem Azure, da Microsoft, e o acordo com o Alexa não é parte de uma parceria mais ampla envolvendo a AWS.

Além disso, as alianças frouxas que a Amazon vem criando por meio do Alexa não vêm acompanhadas de períodos de distribuição garantida e nem implicam em exclusividade, o que deixa os fabricantes de hardware livres para adotar assistentes de voz rivais. Nos círculos da tecnologia, o Google já tem reputação por uma compreensão mais avançada da linguagem natural —a difícil tarefa de adivinhar o significado do que alguém diz. A Ford, de acordo com Butler, deve oferecer escolha aos seus clientes, permitindo que decidam que assistente digital querem usar em seus carros —ainda que a montadora possa vir a selecionar um sistema padrão de inteligência artificial a ser fornecido em todos os seus veículos.

Outras empresas de hardware dizem que é provável que permitam que os clientes escolham, igualmente. A Sonos, fabricante de alto-falantes que lançará um produto integrado ao Alexa este ano, disse que estava discutindo também com o Google quanto ao assistente pessoal doméstico desenvolvido pela empresa.

"Ao pensarmos sobre serviços de voz, não creio que vá existir um serviço que todo mundo, em todas as casas, venha a usar", disse Patrick Spence, apontado para a presidência executiva da Sonos esta semana.

CONCORRENTES

O sucesso do Alexa também tornou mais urgente a missão de empresas como a Samsung, que estão tentando desenvolver equivalentes próprios do serviço.

Brendon Kim, que comanda o Next Ventures, um fundo de investimento em startups da Samsung localizado no Vale do Silício e dotado de US$ 150 milhões em capital, disse que a Amazon "fez bem em mostrar às pessoas o potencial de uma nova interface de voz conversacional". A Samsung está desenvolvendo um assistente pessoal, empregando para isso a startup Viv Labs, que ela adquiriu no ano passado no Vale do Silício.

"O que é realmente importante [nos serviços de voz] é que eles representam uma nova porta de entrada para o software e serviços", disse Kim, semelhante aos serviços de busca ou às lojas de apps em celulares.

Mas a Samsung acredita que o progresso inicial da Amazon não dá à empresa uma vantagem insuperável, em um mercado que está apenas começando. "O jogo está longe de encerrado", disse.

COMO O ALEXA OUVIU OS DESEJOS NATALINOS

Da forma pela qual a Amazon conta a história, você poderia pensar que o Alexa quase tomou o emprego do Papai Noel, no ano passado. Durante as festas, o assistente digital estava ocupado ajudando com os drinques —Tom Collins e Manhattan foram as duas receitas mais solicitadas— e dando instruções sobre como assar perus ou fazer cookies de chocolate. O Alexa cuidava de ligar a iluminação de Natal, tocar música de festas e, claro, pedir presentes na Amazon.com.

Ter um Alexa em casa desperta questões sobre privacidade, no entanto, e em alguns casos o aparelho pode ouvir mais do que deveria. Em uma investigação de homicídio no Arkansas, a polícia solicitou à Amazon que entregasse às autoridades dados de um dispositivo Alexa presente na casa em que o crime foi cometido. A Amazon recusou e só forneceu informações básicas sobre a conta do usuário e seu histórico de pedidos na loja.

Milhões de aparelhos conectados ao Alexa foram vendidos na temporada de festas, o que propiciará a muitos clientes sua primeira experiência com um assistente digital em suas casas. As interações iniciais agora são mais fáceis do que na época em que o Alexa foi lançado - o sistema inicialmente tinha capacidade de compreensão muito mais limitada. Porque o Alexa é acionado por software e poder de processamento em nuvem, e não por um sistema incorporado ao aparelho, ele se torna mais inteligente à medida que alterações no software são introduzidas.

A Amazon não revela quantos aparelhos habilitados para o Alexa ela vendeu, mas informou que o Echo e o Echo Dot foram os produtos de maior venda na Amazon.com na temporada de festas, com nove vezes mais unidades vendidas do que na temporada de festas de 2015. O Echo, um alto-falante em forma cilíndrica, teve seu estoque esgotado duas semanas antes do Natal e só será reposto este mês. O Echo Dot, de menor porte, do tamanho de um disco de hóquei, também teve seu estoque esgotado antes do Natal.

A despeito desses problemas, parece que o desejo de Natal da Amazon foi atendido. Pelo menos por enquanto, o sistema Alexa é o assistente digital mais popular.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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