Para filósofo, rebeliões estudantis dos anos 60 começaram em Berkeley
As rebeliões estudantis que varreram universidades da Europa, EUA e América Latina nos anos 60 não tiveram como ponto de partida o Maio de 68 francês na Sorbonne e em Nanterre, mas no "Free Speech Movement" --Movimento pela Liberdade de Expressão-- na Universidade de Berkeley (Califórnia), em outubro de 1964.
Esta é a opinião de John Searle, filósofo e professor da Universidade de Berkeley. "Eu estive na França em 68 e todos sabiam o que tinha acontecido em Berkeley. Muitos na França consideravam Berkeley como o 'centro da revolução'", diz.
Acervo virtual da Universidade de Berkeley |
Estudantes pedem o "free speech" (liberdade de expressão) em Berkeley (CA), em 1964 |
O professor argumenta que em 64 ocorreu pela primeira vez uma contestação à "universidade como instituição" que representava "valores conservadores" à época. "Provamos que um pequeno grupo de estudantes poderia superar a autoridade e a burocracia universitária", afirma.
Por outro lado, John Searle afirma que insurreições estudantis em universidades são efêmeras: "Os estudantes podem parar uma universidade por um dia ou uma semana, mas no fim a burocracia se restabelece e prova ser um instrumento real de poder".
Em entrevista concedida à Folha Online por telefone, Searle faz críticas aos rumos que tomaram os protestos na França, que, influenciados pelo marxismo, buscaram uma aliança com a classe trabalhadora, diferente do que ocorreu nos EUA.
Universidade de Berkeley. |
Estudante fala no Campos de Berkeley pedindo a liberdade de expressão na universidade |
"O marxismo nunca teve muita influência nos Estados Unidos. Mas muita gente na França ainda era marxista em 1968. Eles achavam que poderiam fazer uma aliança entre estudantes e trabalhadores, que a classe trabalhadora os apoiaria. Ninguém nos Estados Unidos jamais teve esta ilusão porque a classe trabalhadora se opunha aos estudantes radicalmente".
O filósofo disse ainda que a Guerra do Vietnã (1959-1975) impulsionou os protestos estudantis nos EUA.
"A Guerra no Vietnã exacerbou todos os conflitos e agravou as tensões entre os jovens e as instituições e autoridades do establishment".
John Searle foi o primeiro docente a aliar-se aos estudantes no Free Speech Movement em 1964. É autor dos livros "The Campus War" (1971) e "Expression and Meaning: Studies in the Theory of Speech Acts (1979)", que analisam movimentos sociais pela liberdade de expressão.
A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo filósofo John Searle à Folha Online.
Folha Online - Os estudantes de Berkeley estavam cientes dos protestos que se passavam na Europa e especialmente no Maio de 68 francês?
John Searle - Sim. Eu estive na França em 1968 e todos sabiam do que tinha acontecido em Berkeley, e ser de lá até me conferiu algum prestígio, pois muitos na França consideravam Berkeley como o "centro da revolução". Todos achavam que haveria uma insurreição global, e ela tinha começado na Califórnia. Por causa da televisão, as pessoas sabiam o que estava acontecendo na Califórnia e em Berkeley nós também sabíamos o que se passava no mundo. Mas em 1968 a situação em Berkeley já havia se estabilizado.
Folha Online - O historiador Eric Hobsbawn, no livro "A Era dos Extremos", afirma que o Maio de 68 francês tem como uma das causas o aumento repentino da quantidade de estudantes nas universidades em poucos anos. Em Berkeley ocorreu algo similar?
John Searle - O crescimento dos estudantes em Berkeley aconteceu após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), então foi antes dos anos 60. Mas eles não estavam interessados em protestos num primeiro momento, mas apenas construir suas vidas e carreiras. Os anos 50 foram um período calmo. Mas o grande "boom" no número de estudantes universitários que ocorreu na década de 60 na França já havia ocorrido no EUA.
Folha Online - Por que irromperam os protestos estudantis na Universidade de Berkeley (Califórnia) nos anos 1960?
John Searle - Os protestos irromperam em Berkeley em 1964, mas tiveram origem no ano de 1963, e estavam relacionados com os movimentos de direitos civis dos negros. O movimento dos estudantes de Berkeley é uma conseqüência do movimento de direitos civis.
Folha Online - Nesta época a maioria dos estudantes universitários eram brancos, e havia uma segregação racial nos EUA. Os brancos se solidarizaram com as causas dos negros?
John Searle - O comportamento de protesto sobre questões morais era um privilégio da classe média. Foram os jovens da classe média branca e bem-sucedida que tomaram as dores das injustiças contra os negros nos EUA, e era contra isso que eles estavam protestando.
Folha Online - Qual a principal conquista do movimento estudantil de Berkeley?
John Searle O que nós fizemos foi provar que um pequeno grupo de estudantes aliados poderia superar a autoridade e a burocracia universitária. Isto foi uma descoberta incrível, e nós fomos copiados por todo o mundo. Não tínhamos nenhuma fórmula secreta, mas mostramos que podia ser feito. É um pouco como a bomba atômica, o segredo da bomba atômica é que se pode fazê-la. É uma questão de detalhes como ela é fabricada. Berkeley foi a bomba atômica dos protestos estudantis.
Folha Online - Mas quais foram as conquistas práticas de vencer a autoridade e a burocracia conservadoras a que o senhor se refere?
John Searle - A conseqüência mais objetiva foi uma evolução da situação anterior a 1964. Eu não acho que os administradores da universidade poderiam restringir o direito à liberdade de expressão como antes dos protestos em Berkeley. A conquista do "Free Speech" (liberdade de expressão) foi um enorme avanço [para os estudantes e a universidade]. Mas eu acredito que os protestos do movimento estudantil internacionalmente foram provavelmente bastante banais. Na França os estudantes tentaram fazer uma aliança com os sindicatos e conseguiram algumas mudanças nas universidades, mas eu não creio que foram reformas significativas. Não vejo muitos benefícios na Europa em 1968. Nos EUA as conquistas que vieram do movimento estudantil foram a liberdade de expressão nas universidades e um maior suporte aos direitos civis dos negros.
Folha Online - O Maio de 68 francês não foi importante em trazer uma nova forma de comportamento em uma sociedade extremamente conservadora?
John Searle - Pode ser. O principal slogan na França era "contra a sociedade do consumo". Eles deram uma sacudida no sistema universitário, que passou a ser menos rígido, mas nem todas as mudanças foram para o bem. Em alguns casos a situação ficou pior, como após as reformas do sistema educacional. Se alguém for estudar a história dos efeitos de 1968 nas universidades européias, verá que os efeitos foram diversos. Portanto, não está claro para mim que os desdobramentos de Maio de 68 foram benéficos.
Folha Online - O senhor considera que o Maio de 68 na França foi influenciado pelo que aconteceu nos EUA, especialmente em Berkeley?
John Searle - Sim. Como eu disse quando fui à França fiquei impressionado pelo quanto eles sabiam o que se passava em Berkeley. O marxismo nunca teve muita influência nos Estados Unidos. Mas muita gente na França ainda era marxista em 1968. Eles achavam que poderiam fazer uma aliança entre estudantes e trabalhadores, que a classe trabalhadora os apoiaria. Ninguém nos Estados Unidos jamais teve esta ilusão porque a classe trabalhadora se opunha aos estudantes radicalmente.
Folha Online - Levando em conta seus estudos e experiência no movimento estudantil nos anos 60 em Berkeley, até que ponto se pode mudar as instituições a partir das universidades?
John Searle - Uma coisa que pude experimentar quando universitário é o quanto as instituições são frágeis. É muito fácil paralisar uma universidade, colocá-la em crise. Mas também é notável a capacidade dela de retomar o controle. Os estudantes podem parar uma universidade por um dia ou uma semana, mas no fim a burocracia se restabelece, e os planos administrativos, escritórios e secretarias provam ser instrumentos reais de poder.
Folha Online - Como a televisão afetou os estudantes e a opinião pública naquele período?
John Searle - O efeito foi enorme, e o motivo é que estes estudantes nasceram assistindo televisão. Eles percebiam a realidade com o parâmetro da exposição na televisão, e também eram bons em chamaram a atenção das câmeras e virar notícia. A televisão teve dois papéis significativos. Ela deu autenticidade ao movimento. Deu a noção de que o que os estudantes estavam fazendo era importante, pois estava na TV. Ela também foi muito importante na escolha das lideranças, apesar de não fazer isso intencionalmente, pois mostrava alguns líderes, e não outros, conferindo uma visibilidade que eles não teriam sem a TV. Isso também aconteceu na França, onde [Daniel] Cohn-Bendit ganhou estatura.
Folha Online - Como isso se deu em relação à Guerra do Vietnã?
John Searle - O movimento estudantil como um todo se tornou mais inflamado e relevante depois de 1965. Até este ponto era quase irrelevante. Mas a Guerra no Vietnã exacerbou todos os conflitos e agravou as tensões entre os jovens e as instituições das autoridades do establishment. Sem a Guerra do Vietnã os protestos teriam acabado muito antes. A guerra acelerou as manifestações extraordinariamente.
Folha Online - Quais foram as conquistas dos manifestantes no que diz respeito à Guerra do Vietnã?
John Searle - Eu acho que depois de 68 os protestos levaram a continuidade da guerra, mas isto é uma questão de análise histórica. Os movimentos de protestos contra a guerra poderiam e talvez tenham feito alguma diferença, mas após se tornarem violentos, acabaram por dificultar o fim da guerra pelo governo. Eu acho que [Hubert] Humphrey teria terminado a guerra mais rápido que Richard Nixon, mas os estudantes radicais o fizeram perder a eleição, ao fazerem parecer que os democratas eram responsáveis pela desordem.
Folha Online - O senhor poderia pontuar o que considera positivo e negativo nos anos 60 como um década de protestos estudantis no mundo?
John Searle - Os anos 60 como um fenômeno cultural foram um desastre. Eles criaram uma série de expectativas na sociedade que jamais poderão ser realizadas. Uma das coisas que é latente nos anos sessenta é o quanto foi inadequado intelectualmente. Faça a si mesmo a pergunta: "quais são as idéias filosóficas substantivas que surgiram dos movimentos estudantis radicais?" e verá que não existe nenhuma. Intelectualmente foi bastante superficial, e ruim culturalmente, reduzindo os padrões intelectuais em muitas universidades, além de dar aos estudantes o modelo errado de mudança social. Isso aconteceu porque eles [europeus] tinham uma sociedade muito atrasada. Não entendiam como a sociedade funcionava e como deviam se dar os processos de mudança. Mas eu ainda não falei dos bons efeitos. Eles colocaram um fim em uma concepção de vida de estudante em que o slogan era "a educação paternal". A idéia era de que a universidade estava no lugar dos pais e que a universidade tinha uma autoridade sobre os estudantes como a dos pais. Esta nunca foi a visão na Europa, mas foi uma visão comum nos EUA, e teve fim em Berkeley em 1964. Desde então as universidades não pensam mais que tem uma autoridade sobre os estudantes semelhante a dos pais.
Folha Online - A respeito do legado intelectual dos anos sessenta, Marcuse, com sua nova leitura do marxismo trazendo às questões da sexualidade colocadas por Freud, e, por outro lado Guy Debord (1931-94), com sua análise sobre a "sociedade do espetáculo" e a idéia de que a realidade se tornou uma "representação" a todo momento de formas reproduzidas pela sociedade do consumo, não deram uma contribuição ao entendimento da sociedade em que nós vivemos hoje?
John Searle - Eu considero Marcuse um filósofo bastante superficial e confuso. Sua idéia de 'tolerância repressiva', o fato de que nós aceitarmos opiniões diferentes é na verdade uma forma de repressão, não é uma idéia a ser levada a sério. Para ele, permitir uma variedade de opiniões impossibilita o crescimento das tensões que podem resultar em uma revolução. Para Marcuse, para ter uma revolução é preciso ter uma classe reprimida, eu não concordo com isso.
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