Avós de menino sírio cuja foto chocou o mundo relatam cotidiano de perdas
O menino sírio cujo corpo fotografado na praia turca de Bodrum comoveu o mundo se chamava Alan, e não "Aylan", como divulgado antes, afirmam seus avós. Já o primogênito, Galib, fora identificado como "Galip".
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Eram 22h30 de 1º de setembro quando a mãe de Alan Kurdi, 3, ligou para o pai dela, Shexo Senno Kurdi, 50, em Kobani, na Síria.
Rihan, 27, disse ao pai que só podia falar um minuto porque estava quase sem crédito no celular pré-pago.
Raushan Khalil/Folhapress | ||
Shexo Kurdi, 50 e Fatma Mesto, 45, os avós do menino sírio que virou simbolo da crise de refugiados |
Contou que eles estavam em Bodrum, na Turquia. Garantiu que estava tudo bem e que ligaria no dia seguinte.
Ela não avisou que estava prestes a embarcar com o marido e os dois filhos em um bote rumo à Grécia para buscar uma vida melhor na Alemanha, longe da guerra civil que atinge a Síria desde 2011.
No dia seguinte, dois amigos foram até a casa do avô de Alan para avisá-lo: "Alguém viu a foto do seu neto".
Shexo não vira a imagem que chocara o mundo–o corpo do neto na praia turca, rosto na areia e blusa vermelha. Sua televisão não funcionara durante o dia. Kobani está sem eletricidade há quatro anos e só há gerador à noite.
Rihan e os dois filhos, Alan, 3, e Galib, 5, morreram afogados na travessia em um bote de borracha superlotado. O pai deles, Abdullah, 40, viu "os filhos escaparem por seus dedos, mas sobreviveu.
Raushan Khalil/Folhapress | ||
Fatma Mesto, 45, mostra roupas e brinquedos de seu neto, Alan, em quarto de sua casa em Kobani |
Shexo recebeu a reportagem da Folha nesta segunda (21), sentado no chão do que restou da barbearia do genro, Abdullah. O local foi atingido por morteiros disparados por militantes do Estado Islâmico e toda a parte da frente foi destruída. A casa da família fica ao lado, tem rachaduras e buracos de bala.
Quase 60% da cidade de Kobani está em ruínas.
Alan, Galib, Rihan e Abdullah Kurdi eram 4 entre 4 milhões de sírios que deixaram a Síria desde 2011, quando começou a guerra civil que matou 250 mil pessoas.
Desde o início do conflito, em 2011, as forças do regime de Bashar al-Assad recuaram e os três cantões no norte da Síria tornaram-se uma região de governo autônomo curdo, chamada Rojava.
Em 2013, essa região passou a ser alvo de ataques do Estado Islâmico e da Frente Al Nusra, grupos extremistas combatidos pelas forças curdas, a YPG e a YPJ (feminina).
Editoria de arte/Folhapress | ||
'ALAN NÃO CHORAVA'
Abdullah casou-se com Rihan em 2011. Foram viver em Damasco. Pouco depois, começou a guerra, e eles voltaram a Kobani para morar com os pais de Rihan.
Naquela época, o nordeste do país era seguro. Shexo e Fatma estavam contentes de conviver com os netos.
"Alan era quietinho, não chorava muito, era um anjo", diz a avó Fatma.
Ela chora enquanto mostra o quarto onde ainda mantém os brinquedos e bichinhos de pelúcia dos meninos que morreram afogados.
Abdullah trabalhou por um ano na barbearia, mas, por causa da guerra, o lucro era mínimo. Resolveu emigrar para a Turquia com a família e chegou a trabalhar como operário da construção civil em Istambul.
A milícia terrorista Estado Islâmico invadiu Kobani em setembro de 2014. O cerco durou quase cinco meses, e se estima que 3.000 pessoas tenham morrido.
Em janeiro, quando as tropas curdas YPG conseguiram liberar a cidade com ajuda de ataques aéreos dos Estados Unidos, a família de Alan Kurdi voltou a Kobani.
Mas, em junho deste ano, o Estado Islâmico voltou a atacar a cidade. Disfarçados de soldados curdos, militantes entraram em Kobani e massacraram 164 civis. Doze parentes dos Kurdi estavam entre os mortos.
"Rihan disse que não podia morar na Síria, que não era seguro para os meninos", conta o pai dela.
A família foi para Izmir, no sudoeste da Turquia, e aguardou dez dias. De lá, seguiram para Bodrum, na costa turca. Pagaram € 4.000 (R$ 18 mil) para um coiote levar os quatro de barco à Grécia. Esperaram um mês para partir.
Parte do dinheiro foi enviado pela irmã de Abdullah, há 25 anos no Canadá.
"Eles queriam ir para a Alemanha, que estava aceitando refugiados", contou Shexo, em meio ao barulho de um caminhão que passava removendo destroços das casas destruídas pela guerra.
O avô falava todos os dias com a filha e os netos por telefone. "Galib um dia me disse: mamãe vai jogar a gente dentro d'água, vovô, por favor, vem buscar a gente com seu caminhão", diz. "Parece que ele estava sentindo."
O avô fabricava blocos de construção. Mas o Estado Islâmico destruiu sua fábrica e ele está sem trabalhar há mais de um ano.
"A Europa e os outros países precisam fazer algo para que não vejamos mais meninos como Alan morrer no mar" diz. "Precisamos de ajuda para reconstruir Kobani."
A população do cantão de Kobani chegou a quase 500 mil em 2013, quando muitos sírios de outras regiões vieram para cá. Mas, em 2014, com a invasão do Estado Islâmico, muitos fugiram para a Turquia. Depois do ataque em junho deste ano, a população encolheu para 100 mil.
"Rihan tentou me convencer a fugir também, mas eu dizia que era errado", conta Shexo. Ele não saiu de Kobani nem durante o cerco à cidade. Foi ferido três vezes.
Da primeira, estava perto de um carro-bomba, no centro da cidade. Depois, levou um tiro no braço esquerdo. Na vez mais recente, atiraram um morteiro no telhado da casa da família e ele foi atingido pelos estilhaços. "Mas estou bem agora. E eles, não."
Rihan, Alan e Galib estão enterrados no Cemitério dos Mártires de Kobani, que abriga vítimas da guerra civil.
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