É necessário um Renascimento do pensamento islâmico, diz filósofo
O filósofo e ensaísta francês Pascal Bruckner diz em entrevista à Folha que os atentados de sexta-feira passada em Paris sugerem que a guerra ao terrorismo "está apenas começando" e que é preciso reformar o islamismo.
Segundo ele, "desativar militarmente, policial e judicialmente o radicalismo vai levar várias gerações".
O que deve ser feito no curto prazo, afirma o intelectual francês, é estimular a autocrítica no seio da comunidade muçulmana, além de garantir a proteção da maioria moderada em face de possíveis ataques de radicais islâmicos.
Para Bruckner, 66, os atentados da última semana diferem dos de janeiro (quando os alvos foram o semanário satírico "Charlie Hebdo" e um mercado de alimentos kosher) por terem alvo difuso. "Agora, os franceses são culpados por existirem, por serem franceses."
Autor do livro "A Tirania da Penitência" (Difel, 2008), em que analisa o suposto remorso europeu por seu histórico bélico e os efeitos disso na política externa do bloco político, ele vê nas primeiras reações da França aos atentados (bombardeios à Síria e abertura de postos na polícia e na Justiça) uma "mudança radical" de atitude.
"Agora é François Hollande, de repente líder marcial, quem vai pedir a Obama para se envolver", enfatiza.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Etienne Laurent - 13.nov.2015/Efe | ||
Pascal Bruckner (à esq.) no enterro do filósofo André Glucksmann, na sexta (13), antes dos atentados |
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Folha - Antes dos atentados do dia 13 em Paris, o sr. já dizia que o islamismo radical era o desafio deste século...
Pascal Bruckner - O desafio do século 21 é o islamismo, ponto. O radical é a degeneração ideológica do islã. As duas coisas estão ligadas. Desativar militar, policial e judicialmente o radicalismo vai levar várias gerações.
Virou um fenômeno universal, que vai da Argentina à China. A resposta a ele tem de ser encontrada e inventada com a colaboração dos próprios muçulmanos, que são as primeiras vítimas do extremismo.
Em que deve consistir essa resposta?
A primeira é militar e diz respeito a russos, iraquianos e iranianos [que apoiam o regime sírio de Bashar al-Assad] tanto quanto a franceses, americanos, ingleses, sauditas e jordanianos [todos pró-rebeldes].
Há também a resposta policial, a jurídica, a dos serviços de inteligência. Mas, para além de todas elas, há uma resposta ideológica.
O islã, guardadas as devidas proporções, encontra-se na situação em que o cristianismo estava nos séculos 17 e 18: num momento de mutação. Será ele capaz de se reformar, sabendo que não há algo que corresponda a uma Roma do islã sunita?
Não há uma direção unívoca [de orientação ideológica]. Cada um pode interpretar a religião e o Alcorão como quiser. Isso começou em 1979, com a Revolução Islâmica no Irã.
Contrariamente ao que disse [o presidente dos EUA Barack] Obama [em 2013] sobre o fim da guerra ao terror, não: ela está apenas começando. É só o início, o confronto está longe de terminar.
Em janeiro, no atentado contra o "Charlie Hebdo", os terroristas tinham um intuito preciso: dizimar aqueles que, segundo eles, haviam ridicularizado o profeta. Sexta passada, porém, o alvo era bem mais difuso: uma certa "arte de viver" à francesa, o hedonismo... foi uma declaração de guerra a uma civilização?
Sim, essa é a grande diferença. Nos atentados de janeiro, ainda podíamos identificar "justificativas": a caricatura do profeta, no caso do ataque ao jornal; a guerra entre judeus e palestinos, no do tiroteio no mercado judaico.
Agora, os franceses são culpados por existirem, por serem franceses. O terrorismo islâmico carrega uma ilusão apocalíptica do mundo, envolta num discurso religioso; o que querem é matar o máximo possível de gente e acelerar a instauração do califado.
É uma visão messiânica. Não há mais "razão" para matar, eles querem matar e morrer para ir direto para o paraíso.
Na praça da República, principal cenário parisiense das homenagens às vítimas do atentado, mensagens conclamam a não estigmatizar a população muçulmana. Como evitar que a resposta aos atentados descambe para a islamofobia?
É preciso proteger a comunidade muçulmana, as mesquitas dos ataques eventuais de alguns elementos extremistas. E também encorajar o espírito crítico nesse segmento da população.
Essa é a dificuldade: proteger os fiéis em seu direito à crença sem deixar de estimular uma discussão teológica.
Seria necessário um Renascimento, uma Reforma do pensamento islâmico. Isso já é pleiteado por alguns intelectuais muçulmanos.
Mas é bom saber que o cristianismo levou quatro séculos para se questionar e rever seus erros, a partir da Reforma Protestante. Não sei se o islã vai seguir esse caminho.
O sr. já escreveu sobre a suposta culpa europeia por seu passado bélico como obstáculo à constituição de uma Defesa forte e a intervenções militares incisivas no exterior. Os bombardeios franceses na Síria nos últimos dias e o anúncio de novos postos na polícia e na Justiça sugerem a superação desse remorso...
Acho que sim. A única a ainda carregar essa culpa é a extrema esquerda, sob o argumento de que "somos culpados, nós os ocupamos e colonizamos".
O que é incrível no que está acontecendo agora é que a França se desenha como nação bélica, num momento em que os EUA não querem mais saber de guerra.
Há uma mudança radical em relação a 2003 [quando a França se opôs à invasão do Iraque pelos EUA e seus aliados]. Agora é [o presidente socialista] François Hollande, de repente líder marcial, quem vai pedir a Obama para se envolver, até porque os EUA têm certa responsabilidade pela situação no Iraque.
E os americanos aceitam operações aéreas, porém não mais em terra, porque estão traumatizados com o Afeganistão e o Iraque.
E há outro fenômeno em curso na França: a retomada de prestígio do Exército, desprezado desde a Guerra da Argélia (1954-62). De repente, ele voltou a ser um dos melhores do mundo. É o segundo do mundo em eficácia, meios, treinamento, armas.
Para completar, Hollande vendeu quase 200 caças Rafale [da francesa Dassault] a países como Índia, Qatar e Egito. O Exército e a polícia francesa são os dois setores que mais funcionam no país hoje, mais do que a economia e a indústria, por exemplo.
Em que medida a radicalização religiosa de jovens franceses é um problema da educação nacional? A escola poderia remediar isso?
Veja bem, a radicalização também existe nos EUA, no Reino Unido e nos países de maioria muçulmana: milhares de jihadistas vêm da Tunísia, do Marrocos, da Argélia, da Líbia. O jihad oferece aos jovens uma resposta imediata a suas angústias.
A dificuldade de construir sua identidade é solucionada pela adesão a uma ideologia radical que tranquiliza.
O jihad reconforta seus adeptos e lhes oferece a perspectiva da salvação: "Você morre, mas chegará ao paraíso um segundo depois, e Deus vai te acolher".
Numa idade em que há fragilidades, o apelo pode ser extraordinário. É uma maneira de compensar todas as falhas psicológicas da juventude.
A escola tem só uma missão, instruir, o que já tem dificuldade em fazer. Se tiver, além disso, uma missão cívica, vai ficar ainda mais sobrecarregada.
Quem pode evitar a radicalização são os pais. É na família que se deve incentivar a tolerância.
No plano comunitário, os imãs das mesquitas têm um papel a desempenhar, estimulando uma leitura mais indulgente do Alcorão.
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RAIO-X
PASCAL BRUCKNER
IDADE 66 anos
FORMAÇÃO estudou filosofia e letras
BIBLIOGRAFIA "Lua de Fel", " A Tirania da Penitência", "Ladrões de Beleza" e "A Tentação da Inocência", entre outros
PREMIAÇÕES Recebeu os prêmios Médici de Ensaio, Renaudot e Montaigne
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