DEPOIMENTO
Correspondente da Folha relembra fim da União Soviética
Dusan Vranic/Associated Press | ||
Clientes lotam loja de Vilna, capital da Lituânia (então república soviética), à espera da chegada de produtos, em 1990 |
Mikhail Gorbatchev, na noite de 25 de dezembro de 1991, rendeu-se ao fracasso de sua tentativa de salvar o império soviético e renunciou à presidência da URSS. Nas imagens do discurso transmitido ao vivo pela TV, não havia sinais da opulência típica do Kremlin e tampouco foice e martelo, símbolo clássico do regime criado por Lênin em 1917. O momento histórico se desenrolava em cenário austero.
O pronunciamento gorbatchevista era aguardado desde 8 de dezembro, quando líderes de três das 15 repúblicas (províncias) da URSS, Rússia, Ucrânia e Belarus, anunciaram não mais reconhecer o poder central, mortalmente atingido pela crise econômica e pelo avanço do separatismo.
Gorbatchev testemunhava sua autoridade se diluir, em contraste com o fortalecimento de lideranças regionais, capitaneadas pelo russo Boris Yeltsin. Enquanto separatistas tramavam o fim do país, o presidente soviético se entrincheirava no Kremlin, vítima de veloz corrosão em sua capacidade de governar.
À época, eu morava em Moscou havia mais de um ano, como correspondente da Folha, numa estada que se prolongaria até 1994. Vivenciar o cotidiano moscovita e as andanças pelo gigantesco império permitiram experimentar a ruína de um regime convertido de superpotência com aspirações a hegemonia planetária em recipiente de ajuda humanitária internacional, para superar a escassez de alimentos e remédios.
Ao deslanchar as mudanças, em 1985, Gorbatchev reconhecia o estado comatoso da União Soviética. Queria salvar o regime por meio de suas reformas, batizadas de perestroika (reestruturação, em russo).
O desastre econômico impunha à população peripécias para obter produtos básicos, como pão e leite, geralmente acessíveis após longa espera nas filas, transformadas em uma das imagens típicas da perestroika. Naqueles tempos espinhosos, consolidou-se a chamada "cultura das filas". Soviéticos costumavam, ao avistar aglomeração à porta das lojas estatais, aderir à espera, mesmo sem saber o que se ofertava.
O mais importante consistia em adquirir algo, pois se o comprador não precisasse do produto, poderia usá-lo em escambo, prática corriqueira nos anos da debacle soviética. Uma vizinha minha se gabava de ter comprado vários pares de sapatos masculinos, para depois trocá-los por cosméticos e latas de arenque defumado.
Piadas soviéticas ironizavam agruras do dia a dia. "Vocês, no capitalismo, enfrentam um problema: como ganhar dinheiro. Nós, na URSS, temos dois problemas: como ganhar dinheiro e como conseguir gastar", sentenciava uma anedota.
Entrar nos mercados significava, muitas vezes, passear por prateleiras vazias e lidar com vendedoras orgulhosas de sua aspereza. A cartilha do Partido Comunista professava desprezo por "atos pecaminosos" de consumo.
Mas havia acessos ao "inferno capitalista", e a chave respondia por moedas estrangeiras. Detentores de dólares frequentavam lojas estatais especiais ("beriozkas") ou supermercados estrangeiros, como o finlandês Stockmann, para mergulhar em gôndolas cheias de artigos importados.
Sofisticados chocolates suíços e variados laticínios franceses enchiam carrinhos de clientes privilegiados, como diplomatas, correspondentes estrangeiros e integrantes da "nomenklatura", termo usado para descrever a casta dirigente soviética. Setores da elite partidária romperam com Gorbatchev para embarcar nos movimentos separatistas, em expansão da Lituânia, no mar Báltico, à Geórgia, na região do Cáucaso.
Naqueles anos, viajar pela URSS, então o maior país do mundo em território, proporcionava desvendar um império que chegou a contabilizar 11 fusos horários.
Mikhail Gorbatchev se esforçou para manter a integridade territorial da URSS. Porém, a 8 de dezembro de 1991, recebeu o telefonema com a fatídica notícia, do acordo entre líderes regionais rejeitando o poder central.
Coube a Stanislav Shushkevich, líder de Belarus e anfitrião do encontro, fazer a ligação. Em entrevista à Folha, poucas semanas após o momento histórico, ele contou a reação do presidente soviético: "Gorbatchev estava muito emocionado. Ele tinha um hábito curioso. Sempre me tratava por você. Mas, naquela situação, pela primeira vez, fui chamado de senhor".
Isolado no plano doméstico, restou a Gorbatchev abandonar o Kremlin. Um batalhão de jornalistas se posicionou para acompanhar o discurso de saída. Na hora de assinar documentos da renúncia, falhou a caneta soviética do Nobel da Paz de 1990.
Tom Johnson, então presidente da CNN e acompanhando in loco, sacou do bolso uma Mont Blanc e a emprestou para a assinatura histórica, realizada com caneta importada, em cruel simbolismo do fracasso soviético.
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