Na Rússia, ortodoxos são acusados de servir aos interesses do governo Putin
Igor Gielow/Folhapress | ||
O conjunto arquitetônico ortodoxo da cidade de Serguiev Posad, centro espiritual da igreja russa |
A Igreja Ortodoxa Russa não nega a proximidade com o governo do presidente Vladimir Putin, de quem é um pilar importante, mas rejeita ser sua marionete.
"A natureza do Estado é tentar controlar, mas em mil anos este é o período de maior liberdade religiosa na Rússia", diz o homem que é visto na Rússia como a força propagandística por trás da modernização da imagem da igreja, Vladimir Legoyda.
Aos 43 anos, esse jornalista e cientista político é o chefe de comunicação do Patriarcado de Moscou e de Toda a Rússia, que responde por 150 milhões de fiéis na russos e em 16 outros países. Foi o primeiro laico e o mais jovem ocupante do cargo.
Sua afirmação parece otimista para os críticos de Putin, que veem manipulação no uso que o governo faz da ritualística religiosa –o patriarca Cirilo, equivalente ao papa católico, é figura pública de proa associada ao regime. Já chamou Putin de "um milagre", em 2012.
Mais, incidentes como a aberta homofobia da igreja e a condenação das jovens do grupo punk Pussy Riot, que fizeram um protesto contra Putin dentro de uma importante catedral moscovita também em 2012, reforçaram a imagem de intolerância religiosa. "Aquilo chocou porque nunca pensamos que poderia acontecer, mas é episódio superado", diz Legoyda enquanto fala com a Folha em seu escritório em um monastério, ironicamente à sombra do colosso soviético que sedia a Academia de Ciências da Rússia. "Olha o Estado ali", brinca.
Não só ali. No caso do Pussy Riot, a performance iconoclasta associando Putin à igreja ocorreu dentro da Catedral do Cristo Salvador, destruída pelo regime comunista em 1931 e reconstruída como motivo de orgulho religioso e nacional pós-soviético.
Efetivamente, a relação igreja-Kremlin é intrínseca porque boa parte dos prédios religiosos ou pertence ao Estado ou recebe verbas como monumentos históricos.
Desde o início da dinastia Romanov, no século 17, os chefes do poder usam a interface da igreja com o povo. "A ideologia da igreja é a cola da Rússia, está em seu tecido social", conta Legoyda.
Nos anos de Boris Ieltsin na Presidência, entre 1991 e 99, houve uma tentativa mais aberta, segundo ele, de interferência. "Hoje o Estado apoia a igreja, mas não é assim tão preto e branco como gostam de pintar. Discordamos em vários aspectos."
Ele cita as tentativas da igreja em promover algum tipo de conciliação na Ucrânia, centro histórico da ortodoxia e onde a disputa aberta com a Rússia provocou uma dissidência na igreja local.
Para os críticos, nada passa de justificação do putinismo. Além de razões políticas, como a proximidade entre o patriarca e a KGB no passado, sempre é lembrada a isenção da igreja na importação de álcool e tabaco e os gostos pessoais de Cirilo, que já foi fotografado com um relógio de US$ 30 mil que sua assessoria tentou apagar em fotos, sem sucesso.
"Isso tudo é propaganda. Sabemos da nossa fé e de como Putin a defende", diz, sem aparente ironia, Konstantin Timoshenko, 32, que numa tarde de setembro visitava o monastério de são Sérgio em Serguiev Posad, principal centro religioso da Rússia. Lá estão as relíquias do santo Sérgio de Radonej, um dos mais importantes do mundo ortodoxo.
"Sabemos o valor de ter uma boa relação com o Estado. Sob o comunismo, o padre tinha de entregar uma cópia do sermão para um oficial da KGB antes de poder pregar, isso para não falar nas atrocidades bem conhecidas", diz Legoyda.
Igor Gielow/Folhapress | ||
Vladimir Legoyda, chefe de comunicação da Igreja Ortodoxa Russa, em seu escritório |
Sua ascensão é um sinal dos tempos. Produto típico do regime soviético, Legoyda nasceu no Cazaquistão de uma família da Ucrânia —seus avós eram batistas.
Nos anos 90, já cursando o MGIMO (o Instituto Rio Branco russo), passou uma temporada na Universidade da Califórnia. "Lá havia um centro de estudos ortodoxos, e entendi que estávamos no mundo todo", conta.
O "ambiente meio punk, meio monástico", como definiu, o fez ter a ideia de lançar uma revista. "Ela ia se chamar 'Morte para o Mundo', o que dá noção do que pensávamos", ri.
O projeto evoluiu, em 1996, para a "Foma", periódico ortodoxo que se notabilizou por colocar artistas e famosos nas suas capas enquanto fazia um trabalho de tradução de textos clássicos.
Até o nome da revista, que remete à transfiguração de Cristo, gerou problemas: era o título de uma publicação feminista e de um poema famoso entre os Jovens Pioneiros, entidade comunista.
Bancada por empresários e por doações, a "Foma" chegou a ter circulação de 55 mil exemplares. Hoje está em cerca de 30 mil, e desde 2006 é mensal.
Quando já dava aula de sociologia e religião no MGIMO, Legoyda chamou a atenção do então metropolitano (equivalente a arcebispo) de Moscou, Cirilo. Começaram a conversar, e o já patriarca enfim o convidou para trabalhar para igreja em 2009.
O desafio, para a "Foma" e para a igreja, é "virar digital". Até aqui, atribui-se ao esforço em sites e redes sociais a manutenção da frequência à igreja de cerca de 10% dos fiéis declarados.
Legoyda, por ora, tem tido sucesso. Segundo pesquisa de fevereiro passado do instituto Levada, 56% dos russos creem que a igreja tem defendido os valores do país.
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