Permissão para mulher dirigir é 1º passo em modernização saudita

DIOGO BERCITO
DE MADRI

A Arábia Saudita tirou seu câmbio do ponto morto ao anunciar nesta terça-feira (26) que mulheres finalmente poderão dirigir no país.

Não é que o governo esteja acelerando rumo ao futuro, mas pelo menos cedeu em uma das demandas simbólicas da sociedade civil.

O direito de mulheres conduzirem um carro é uma luta antiga nessa riquíssima monarquia alimentada pelo petróleo. Já em 2011 a Folha conversou com a saudita Raniya Almahozi, interrogada por publicar um vídeo seu ao volante. A ativista Manal al-Sharif, líder de um protesto, tinha causado algum espanto no mundo ao ser detida por dirigir um veículo.

Essa causa se tornou um dos símbolos da rigidez da sociedade saudita, formada a partir de uma visão conservadora do islã conhecida como "wahabismo" —levada ao extremo, essa crença influencia organizações radicais como o Estado Islâmico.

Não era tão dramático quanto o fato de que pessoas ainda são decapitadas ou sujeitas a chibatadas no país, mas o fato de que mulheres eram proibidas de guiar um carro servia como um exemplo digerível do atraso dos direitos humanos por ali.

O direito igual ao volante, aliás, era uma das exigências do dissidente saudita Raif Badawi, detido em 2012 por "insultar o islã". Ele foi chicoteado dezenas de vezes, ao ponto de o restante da sentença ser suspenso devido à fragilidade de sua saúde.

A BATALHA DO CAMELO

Independente do quão radical seja a interpretação do islã, os textos religiosos dessa crença não tratam do direito ou não de mulheres dirigirem. Essa religião surgiu no século 7, quando o transporte era o camelo -animal com o qual, aliás, uma das esposas do profeta Maomé liderou uma batalha histórica, segundo a tradição.

Mas clérigos sauditas, conhecidos pelo extremo conservadorismo, justificaram a proibição com uma sorte de explicações. O carro danificaria os ovários das mulheres, chegaram a sugerir.

Em termos práticos, proibir que uma mulher tome o volante faz parte de uma visão social mais ampla em que a simples ideia de uma mulher independente parece ameaçar o tecido do país.

É o mesmo contexto em que mulheres dependem de guardiões, na Arábia Saudita, e não têm direito a circular livremente pelas ruas.

Aos cínicos, é claro, o avanço anunciado nesta terça-feira é calculado, quase uma ação de marketing.

Permitir que mulheres dirijam é sem dúvida parte da estratégia do novo herdeiro ao trono, Mohammed bin Salman, 32, para modernizar a imagem do país —sem ceder demasiado à influente classe dos clérigos, cuja reação nas próximas semanas será fundamental para medirmos, afinal, quão longe pode ir sua modernização.

DIOGO BERCITO, 29, é mestre em estudos árabes e foi correspondente da Folha em Jerusalém em 2013 e 2014

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