Em livro póstumo, Hobsbawm diferencia o Che mítico do real
David Mercado/Reuters | ||
Bolivianos relembram os 50 anos da morte de Ernesto "Che" Guevara em Vallegrande, no leste do país |
Um livro intitulado "Viva la Revolución - A Era das Utopias na América Latina", que reúne artigos e ensaios de Eric Hobsbawm (1917-2012) sobre os movimentos de esquerda no continente, pode parecer um convite ao sono para quem não tem mais ilusões a perder e já chegou a um juízo crítico a respeito dos descaminhos de Cuba, da difusão equivocada da guerrilha guevarista como método de transformação social e das aventuras populistas comuns na região.
A boa notícia é que, apesar de escritos cujo interesse tornou-se muito restrito (o tema do "neofeudalismo" no Peru, por exemplo), o volume traz textos nos quais reencontramos o historiador britânico no salutar exercício de seu senso crítico e lucidez.
Não se fazem mais marxistas como Hobsbawm. Parecem relegados ao passado aqueles comunistões cultos e respeitáveis, de índole humanista, capazes de dialogar e de reconhecer erros da própria esquerda —embora não raro inclinados a um certo "progressismo conservador" em matéria de arte.
Um exemplo luminoso, a destacar entre os textos da coletânea (agora que se revisita a figura do icônico revolucionário morto há 50 anos), é o breve "Um Homem Rigoroso: Che Guevara".
Escrito em 1968, logo após a morte do guerrilheiro, revela um historiador consciente das fantasias que se entrelaçavam em torno daquele homem bonito e destemido —um "mito com poucos pontos de contato com a realidade".
A imagem de Che Guevara como "rebelde exemplar, que rejeitava tanto as convenções burguesas como a velha doutrina e a burocracia comunista", potencializada pela figura glamourosa que encantava de hippies a vanguardistas românticos da juventude de classe média, é contraposta ao "puritanismo" de um revolucionário profissional que se situava mais no campo histórico do bolchevismo do que na seara da contestação libertária.
"Che era de fato um revolucionário" —dizia Hobsbawm— "mas seus pontos de referência não eram Byron, os estudantes de Berkeley ou mesmo Bolívar, mas Lênin".
Ao final, o autor enfatiza a necessidade de refletir sobre o legado de Che, que seria digno de "um estudo sério", o que, a seu ver, "deveria significar, mesmo para os mais simpáticos à sua causa, estudo crítico".
Entusiasta de primeira hora da Revolução Cubana, Hobsbawm deu-se logo conta de que a tática da guerrilha, embrulhada pelas teses de Régis Debray, afigurava-se como um grande erro —tais ações mostravam-se na melhor das hipóteses "heroicamente inúteis".
Mantêm também interesse outros escritos, como aqueles dedicados à tentativa de transição pacífica para o socialismo no Chile de Salvador Allende, abortada por um golpe "que não surpreendeu ninguém".
Viva La Revolución - A Era das Utopias na América Latina |
Eric Hobsbawm |
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O Brasil, claro, também está presente na coletânea. O historiador, como se sabe, conhecia bem o país e estudou o cangaço.
Nas primeiras visitas, impressionou-se com a pobreza do Nordeste e com a industrialização paulista. E ele deixou uma pequena curiosidade: em 1962, escreveu sobre a bossa nova, aquela nova "maneira de cantar e tocar" que fazia sucesso "entre os descolados da classe alta brasileira".
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