MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA
Morte simbólica das universidades
O editorial "Coerção na USP", publicado nesta Folha no último domingo (26), apresentou um diagnóstico sombrio sobre a atual situação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e da Escola de Comunicações e Artes (ECA).
Embora o retrato não seja absolutamente estranho às duas instituições, deixou de lado questões que merecem novo exame.
O jornal afirma que as atividades docentes e acadêmicas estão relegadas à condição anômala da clandestinidade, sugerindo que o seu livre exercício está aprisionado por ações de interdição de prédios, de recorrentes movimentos grevistas de professores, funcionários e estudantes.
Finalmente, o editorial aproximou a realidade de hoje à do passado, quando a repressão política obrigou os mestres da FFLCH a ministrar aulas de modo igualmente discreto, quando não escondido, pois estavam "à mercê de policiais da ditadura".
Todos nós, estudantes nos anos 1970, jamais esqueceremos o temor instaurado, que inviabilizava a liberdade de ensino e, sobretudo, punha em risco a vida de professores e alunos.
A Faculdade de Filosofia, contudo, manteve qualidade de formação dos estudantes nas suas diversas habilitações, muito como fruto do empenho de seus docentes -e é preciso não esquecer que vários foram afastados, não sendo raras as prisões e torturas.
Diversa é a atual realidade das escolas de humanidades e artes na USP, ainda que, paradoxalmente, atitudes intolerantes e extremadas não sejam incomuns, impedindo o acesso aos espaços, constrangendo professores, estudantes e mesmo funcionários, coibindo, enfim, a liberdade da cultura universitária.
Tais manifestações são o avesso da política, embora, seguidamente, se afirmem como a sua própria expressão. A despeito disso, as diferenças são indeléveis, pois as vidas não correm risco, não há repressão institucionalizada, tampouco censura ao conteúdo das disciplinas.
É fundamental considerar que, muito provavelmente, estejamos vivendo a morte simbólica de toda uma concepção de universidade, resultando numa situação de defasagem entre as regras da instituição e a multiplicidade de expectativas e demandas existentes.
Independentemente, nada justifica atitudes intolerantes, tampouco a afirmação absoluta de direitos que desconhecem os direitos alheios.
O desconhecimento deste princípio civilizatório basilar tem respondido, em larga medida, pelos impasses da instituição. Por que uma faculdade tão zelosa da liberdade e da crítica atingiu tal situação limite?
As respostas são variadas e demandariam análise detida, o que não é o caso. É possível arrolar, no entanto, alguns motivos importantes: a hierarquização das áreas no âmbito das universidades, que tende a minimizar o significado das ciências humanas; as mudanças sociais de vulto em função da multiplicidade de coletivos e de reivindicações; a difusão massiva das redes sociais; uma espécie de nostalgia do período de resistência da Faculdade de Filosofia, indiferenciando contextos ditatoriais e democráticos.
O entendimento do conjunto desses descompassos não se desprende, todavia, da própria crise de legitimação das universidades no mundo atual, sobretudo das públicas.
A excessiva burocratização e normatização dessas instituições só constrange os impulsos criativos e a liberdade de ação, potencializando discordâncias.
Como bem salientou Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP e colunista da Folha, a FFLCH é responsável pela formação de intelectuais e personalidades públicas de grande vulto. Está muito longe de ser uma instituição irrelevante.
No entanto, para preservar esse patrimônio inestimável, precisa, imediatamente, reorganizar-se. Trata-se de decisão urgente e inadiável, para cujo concurso a sua comunidade lúcida não pode se abster, inclusive a mídia esclarecida.
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA é professora titular do departamento de sociologia da USP. Foi pró-reitora de Cultura e Extensão da universidade (2010-2015)
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