Patrocínio cultural e liberdade de expressão
Joan Marcus - 21.mai.2017/The Public Theater via Associated Press | ||
Encenação da peça "Júlio César" que satiriza o presidente Donald Trump |
Foi noticiado o corte de patrocínio a um espetáculo de teatro que esteve em cartaz neste ano em Nova York. A peça de William Shakespeare, "Júlio César", trata de um governante obcecado por poder.
Tudo teria começado após Donald Trump Jr. questionar, em uma rede social, a semelhança entre seu pai, o presidente dos EUA, e Júlio César, personagem da peça, do modo de se vestir ao sotaque eslavo da esposa. Na trama, o líder romano é assassinado por minorias e mulheres, o que foi entendido como um elogio à violência.
Como os Estados Unidos são considerados um país marco da liberdade de expressão, a retirada do patrocínio à peça causou acalorados debates, com manifestações até de quem não teria interesse em ser espectador. Descreveu-se o caso como exemplo de censura e intolerância à diversidade de pensamento.
No Brasil temos as mesmas preocupações. Aqui há mecanismos de fomento público que permitem aos empresários realizar a promoção de sua marca e ainda deduzir os valores do Imposto de Renda devido.
Em todas as formas de fomento público, as leis estão estruturadas para proteger, promover e valorizar a liberdade de expressão. A lei mais conhecida nesse campo é a Rouanet, que criminaliza em seu artigo 39 qualquer discriminação de natureza política que atente contra a livre expressão.
Se o caso americano se tornou polêmico pela retirada do patrocínio, no Brasil, possivelmente porque o "cobertor da cultura é muito curto", as controvérsias giram em torno das autorizações de captação e da destinação dos recursos captados.
Um exemplo recente, que provocou protesto, foi a autorização para que captasse recursos o projeto "Confissões de um Ladrão de Livros", filme que retratará a vida de um criminoso conhecido das bibliotecas públicas brasileiras, já condenado diversas vezes.
O argumento principal do repúdio foi o de que não haveria sentido em utilizar dinheiro público para glamorizar a vida de tal figura.
Muitos defenderam que os valores deveriam ser destinados às bibliotecas furtadas, que carecem de orçamento para segurança e manutenção de acervos.
A indignação é pertinente, mas parte da noção de que houve preterição de bibliotecas em benefício de ladrões de livros. O contraponto, também coerente, é que o direito à cultura tem a garantia da liberdade de criação e da pluralidade de ideias.
O acesso aos produtos culturais deve ser o mais amplo possível, independente do tipo de financiamento. Não fosse assim, não teríamos o filme "VIPs - Histórias Reais de um Mentiroso" e tantos outros.
E aqui está um dos maiores desafios na seara cultural: o de encontrar o equilíbrio no uso dos mecanismos de incentivo sem prejudicar outros valores democráticos.
Pelas leis brasileiras de benefícios fiscais, as marcas podem até pedir para não aparecerem num projeto, mas não cabe censura, nem tampouco cortar um patrocínio por esse motivo.
É direito da sociedade manifestar repúdio a quaisquer produtos artísticos -mas sempre depois de seus lançamentos, e não antes como forma de vetá-los.
FÁBIO DE SÁ CESNIK é advogado sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, autor do livro "Guia de Incentivo à Cultura" e presidente da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo
INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES é é procuradora regional da República. Doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, escreveu "Direito ao (do) Patrimônio Cultural Brasileiro"
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