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Serafina

Cineasta usa trilhas sonoras marcantes para contar grandes histórias

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Seria natural esperar que a visão fosse o sentido mais aguçado de um cineasta. No caso de Eduardo Coutinho, porém, isso não é verdade: o diretor de "Edifício Master" (2002) é notoriamente um ouvinte singular. Sua paciência e sua curiosidade não têm limites, e é com elas que Coutinho investiga e revela as pessoas que retrata em seus documentários.

Em "As Canções", seu 12º longa-metragem, homens e mulheres com idade entre 22 e 82 anos contam por que determinada música marcou para sempre suas vidas. Para a seleção, uma equipe de pesquisadores saiu às ruas do Rio de Janeiro segurando um cartaz com a pergunta: "Alguma música já marcou sua vida? Cante e conte sua história". Dos 237 entrevistados, Coutinho escolheu 18, que foram filmados, um a um, sentados numa cadeira preta dentro de um teatro silencioso e intimista, recurso já utilizado em "Jogo de Cena" (2007).

"Filmar em teatros é uma boa solução para quem não tem mais condições físicas de subir morro", explica esse paulistano de 78 anos que, há cinco décadas, trocou São Paulo pelo Rio, enquanto acende um cigarro.

Vavá Ribeiro
Eduardo Coutinho lança "As Canções", longa sobre histórias humanas e a trilha sonora de cada pessoa
Eduardo Coutinho lança "As Canções", longa sobre histórias humanas e a trilha sonora de cada pessoa

INVACILÁVEL & CIA.

"As Canções" é de uma simplicidade e de uma profundidade tocantes e tem pelo menos cinco personagens extraordinários.

Um morador da Pavuna que se diz "invacilável", por ser dotado de um "detector de vacilo". Uma senhora negra de cabelo laranja que, questionada sobre a maneira como vê hoje, após tantos anos, seu romance quase trágico (ela compra um revólver, atira no amante, mas a arma falha), não titubeia: "Foi maravilhoso".

Um jovem de classe média que, num misto de remorso e saudade, canta um samba que ele próprio compôs em homenagem ao pai morto. Uma mulher melancólica de vestido florido que, desde o começo de sua paixão mais intensa, sabia que "Retrato em Branco e Preto", de Tom Jobim e Chico Buarque, cujos primeiros versos são os desesperançados "Já conheço os passos dessa estrada/ Sei que não vai dar em nada", era "a" sua canção. Um militar aposentado que soltava a voz nos bordéis do norte do Brasil junto com Waldick Soriano.

São, na maioria, histórias de amor, e Roberto Carlos –com "Não Se Esqueça de Mim" e "Olha", esta repetida– é o campeão de hits rememorados.

"CABRA MARCADO"

Assim como "O Fio da Memória" (1991), "Boca de Lixo" (1992), "Santo Forte" (1999), "Peões" (2004) e "O Fim e o Princípio" (2005), além dos citados "Edifício Master" e "Jogo de Cena", "As Canções" faz parte da grande fase de Coutinho, iniciada em 1984 com "Cabra Marcado para Morrer", hoje um clássico do cinema nacional.

"Cabra Marcado" tem uma trajetória complicada, que se confunde com a história do Brasil. No começo de 1964, empenhado em produzir ficção, o diretor se enfiou no interior da Paraíba para rodar um longa baseado no assassinato, ocorrido em 1962, de João Pedro Teixeira, líder de uma liga camponesa. No elenco, a viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, e participantes do movimento. Mas o golpe militar, em março daquele ano, interrompeu as filmagens.

Em 1981, no início do processo de abertura política, Coutinho decidiu voltar à Paraíba e à história que não tinha terminado de contar. Partiu em busca dos camponeses que atuaram no primeiro "Cabra". Depois foi atrás de Elizabeth Teixeira, a viúva, que vivia escondida, sob um nome falso, numa pequena vila no Rio Grande do Norte. Por último, seguiu o rastro dos filhos de Elizabeth, esparramados pelo país e sem notícias da mãe. É o registro desses acontecimentos, entremeado por cenas do filme inacabado, que tornaram "Cabra Marcado para Morrer", lançado em 1984, um verdadeiro símbolo do fim da ditadura –e um marco de virada na carreira do diretor, até esse momento indeciso entre a ficção e o documentário.

"O que fiz antes [de 'Cabra Marcado'] não tem como ser muito bom. Eu não sabia quem eu era. Não podia ir fundo nas coisas", diz.

Embora não rejeite suas obras ficcionais –"O Pacto" (1966) e "Faustão" (1970), por exemplo–, considera-as com enorme distanciamento. "Eu ainda não era eu", insiste, e acende outro cigarro.

TANGO E BOLERO

Mas de onde surgiu a ideia de fazer "As Canções"? Da cena de "Edifício Master" em que um senhor, que na juventude cantara "My Way" ao lado de Frank Sinatra numa festa nos Estados Unidos, canta novamente a canção, com o coração na boca e a plenos pulmões?

Não. Coutinho observa que usa música em vários de seus trabalhos. Acredita que ela é o auge dramatúrgico da voz. E a voz, somada à imagem do rosto de quem fala, é um dos elementos fundamentais de sua arte.

Além do que, a música é um meio de transporte poderoso para outros tempos. Uma maneira quase infalível de comover alguém. Com "As Canções", ele queria comover. "Não estava preocupado em revolucionar a linguagem cinematográfica."

Indagado sobre qual seria a canção da sua vida, responde que nenhuma. Apesar disso, consumia muita música brasileira, tango e boleros até a chegada do CD. Mas não se adaptou à nova tecnologia e parou de comprar discos. Também não usa computador nem celular.

HOMEM, ARTISTA E DEUS

No dia a dia, é desatento. "Esqueço o nome das pessoas que me apresentam, me atrapalho. Para piorar, estou começando a ter problemas de memória", constata.

Como artista, no entanto, é o contrário disso. Está sempre interessado no ser humano, engajado na descoberta da alteridade.

De certo modo, ele pode ser considerado o "cineasta dos outros", assim como o poeta mineiro Francisco Alvim ("O Metro Nenhum", 2011), seu companheiro de geração, foi chamado de "poeta dos outros", por construir seus poemas a partir de falas alheias.

Em seus filmes, muitos personagens têm fé em Deus e na vida após a morte. Pergunto que sentimentos essa dimensão religiosa provoca num marxista ateu. Coutinho se agita. A vida é cheia de mistérios. Não quer ser tachado de marxista ateu. Então, como se define? Nem pensa, diz: "Sou um materialista mágico".

*

Obra é sobre relações
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

Militante marxista da cultura na juventude, Coutinho desenvolveu na maturidade um cinema decididamente antiutópico, avesso a qualquer exposição totalizadora ou ideológica da vida social.

Para ele, o documentário se tornou a arte de descobrir a narrativa que os indivíduos construíram para e sobre suas vidas, como se o sentido final da realidade estivesse nesses fragmentos de histórias pessoais.

Não há hierarquia nos filmes de Coutinho, pois todas as narrativas são comoventes, ao testemunharem o esforço das pessoas de encontrar a sua felicidade num mundo adverso. E cada uma das histórias é única, uma realidade em si, porque contém uma verdade irredutível a categorizações.

No entanto, o cinema de Coutinho é também marcado por essa dúvida: o que faz com que as pessoas convivam umas com as outras? O que as leva a coabitar um edifício socialmente monstruoso ("Edifício Master"), a realizar juntas uma festa numa favela ("Babilônia 2000"), a organizar uma luta coletiva ("Peões"), a expor e a permitir a mimetização de suas experiências e memórias ("Jogo de Cena")?

É uma questão essencialmente política, porque indaga sobre o modo como as vidas comuns se relacionam numa sociedade tão fragmentada e fraturada. É ela que faz o cinema de Coutinho ainda mais relevante, incontornável, para além do imenso valor cinematográfico e documental que possui.

Em seu novo filme, Coutinho parece ter encontrado a mais feliz das respostas para esse problema: a música, ou melhor, a canção.

Há certa diferença entre uma e outra. A canção não serve apenas à fruição estética: ela invade o campo da experiência e imprime na vida dos indivíduos um sinal, uma memória, um apelo, que é ao mesmo tempo de cada um deles e da comunidade que eles sonham construir.

A história de cada pessoa é feita das canções que ela amou e que ama. Mas assim também é a história das sociedades: um conjunto de canções que foram compartilhadas, cantadas e amadas coletivamente.

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