Serafina
Por intimidade, habitante tende a não conhecer cidade onde vive
Nem precisa ler a Danuza para saber: para conhecer uma cidade, nada melhor do que ser ciceroneado por um morador. Do contrário, só nos resta o "Lonely Planet", escrito por viajantes aventureiros, mas lido por turistas meio micados, incapazes de ultrapassar a epiderme do circuito de grandes museus e restaurantes com três estrelinhas.
Afinal, o que caracteriza o turista perfeito é menos a camisa florida do que o roteiro previsível de sua viagem. No fim, muitas fotos para o Facebook, mas nenhuma história para contar.
Até aqui, nada de novo. Só que podemos virar a situação do avesso e nos perguntar: como ser um viajante em sua própria cidade? Sim, porque ser um habitante é uma forma automatizada de estar em um lugar. O morador é aquele que não precisa conhecer nada, simplesmente porque um se confunde com o outro: a cidade mora nele tanto quanto o contrário.
Adriana Komura | ||
Por intimidade, habitante tende a não conhecer cidade onde vive |
Um historiador inglês observou que, ao longo do Corão (a escritura do islã), não havia menção a um camelo sequer. Ao que Jorge Luis Borges, o grande escritor argentino, replicou que, por isso mesmo, o Corão só poderia ter sido escrito por um árabe.
O habitante de uma cidade tende a não conhecê-la por excesso de intimidade. Como se dá com muitos maridos e mulheres em casamentos longos, o morador repete roteiros, refaz sempre os mesmos caminhos. A cidade é, para ele, um lar, seu lar. Como fazer então para ser um viajante em sua própria terra?
Fácil: basta ter amigos de fora. Tanto estrangeiros visitantes, aos quais você apresentará a sua cidade (a eles e a você também, pois terá disposição para ir a lugares a que nunca foi), quanto ex-forasteiros e agora seus conterrâneos, que preservam o espírito de viajantes e continuam a praticá-lo, mesmo tendo se tornado moradores.
Tenho um casal de amigos que veio de São Paulo para morar no Rio há alguns anos. Ficava espantada a cada vez que saíamos juntos, pois eles sempre me levavam para lugares diferentes no lugar em que vivo desde que nasci. E mais, mesmo nos locais que eu estou cansada de conhecer, eles sempre sabiam algum detalhe decisivo, como o fato de que o pedaço embaixo da escada do lado direito do palco do Circo Voador costuma ficar vazio –até quando o resto do ambiente está cheio!
Depois que descobri isso minha vida nunca mais foi a mesma. Antes, eu só pensava em meus amigos estrangeiros quando precisava que eles me apresentassem ao "new hot spot" de Nova York ou a um brechó legal em La Chueca, em Madri. Agora, não. Se quero saber qual é o novo restaurante do meu próprio bairro, peço socorro aos ex-estrangeiros, agora moradores, eternos viajantes.
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