Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
Publicidade

Serafina

Terra de Chico Xavier terá museu, hotel temático e cartão de crédito do médium

Mais opções
  • Enviar por e-mail
  • Copiar url curta
  • Imprimir
  • Comunicar erros
  • Maior | Menor
  • RSS

Quinta, 14 de novembro, véspera de feriadão. Todo mundo está empacotando o biquíni e a sunga para enfrentar um dos maiores engarrafamentos da história rumo ao litoral. Enquanto isso, a equipe da Serafina empilha roupas comportadas para enfrentar sua primeira experiência no turismo religioso.

O destino é Uberaba –onde Chico Xavier, o médium mais famoso do Brasil, fez sua reputação. Diziam por aí que a "capital do zebu" queria criar um grande polo nacional de turismo religioso e estaria prestes a virar uma espécie de Aparecida dos espíritas.

Veja vídeo

Assista ao vídeo em tablets e celulares

O ponto de partida da excursão é o Instituto Françoso de Membro Superior e Terapia de Mão -de nome curioso, nada mais era do que uma clínica de fisioterapia. E foi de lá, no bairro do Campo Belo, em São Paulo, que saímos com a Caravana Caminheiros do Evangelho com destino à meca do espiritismo.

Antes de rodar os 485 km no ônibus até Minas Gerais, algumas orientações do casal Ailton e Samantha Ceródio, organizadores do grupo: "Lá em Uberaba é todo mundo britânico", diz Samantha. "Tudo começa na hora, então tem que acordar cedo."

"Nada de bebida alcoólica. Essa é uma viagem religiosa", sentencia Ailton. A TV do ônibus exibe o blockbuster espírita "Chico Xavier", com Nelson Xavier e Tony Ramos, enquanto os caravaneiros vão apagando em suas poltronas.

Oito horas depois, com o sol nascendo e as costas doendo, chegamos ao Manhattan Flat Service, em Uberaba. Em vez do esperado descanso na cama plana, ganhamos uma hora para trocar de roupa e partir para o primeiro ponto do roteiro, a casa de Chico Xavier. Minha primeira lição da viagem foi a mesma que o espírito Emmanuel deu ao médium: disciplina, disciplina, disciplina. Os espíritas são muito regrados.

Francisco de Paula Cândido Xavier nasceu em Pedro Leopoldo (MG), em 1910, e por lá começou a desenvolver seus dons, supostamente conversando com espíritos e escrevendo cartas e livros ditados por eles. Mas foi em Uberaba, para onde se mudou em 1959, que ele se tornou o grande ícone da doutrina.

Segundo seus discípulos, Chico prometeu que só morreria quando todos os brasileiros estivessem felizes. Isso aconteceu em 30 de junho de 2002, dia em que o Brasil virou penta.

VIDA SEXUAL E COISA RUIM

A casa em que Chico vivia virou uma espécie de museu improvisado, mantido por seu filho adotivo, Eurípedes Higino. Logo na entrada, vendem-se bustos do médium a R$ 50 e gorrinhos parecidos com os que ele usava a R$ 20.

E livros, muitos livros, porque, lição número dois, se tem uma coisa que os espíritas gostam de fazer mais do que acordar cedo, é ler.

Os muitos livros da biblioteca do próprio Chico estão expostos no museu.

Numa mesma prateleira, se acotovelam "As Cartas do Coisa Ruim", de C.S. Lewis, "Yoga - Paz com a Vida", de Hermógenes, e "A Nossa Vida Sexual", do dr. Fritz Kahn.

Abrindo espaço entre a horda de turistas espirituais, é possível ver, numa parede, 37 boinas e gorros que ele usava para disfarçar os cabelos ralos.

Vaidoso, colecionava também produtos de beleza: creme Nivea, talco Pompom e sete frascos de água de colônia se espremem num cantinho. O fixador de dentaduras Ultra Corega em pó, talvez por mais importante, acabou na cristaleira ao lado de prêmios e medalhas.

Fotos são muitas também: com Roberto Carlos e Vera Fischer, além de uma montagem com Hebe Camargo. Mas o destaque mais curioso é a vitrine chamada "Obras literárias que falam mal de Chico Xavier". A descrição diz que o médium achava muita graça dos ataques.

O roteiro da viagem prevê uma experiência de cura espiritual na Casa da Sopa Adolfo Fritz. O local é um dos chamados "trabalhos" que cresceram em Uberaba em torno do fenômeno Chico Xavier -atrações realmente ligadas ao médium são bem poucas. Os trabalhos são obras de assistência social que, em troca de alguma doação, oferecem aos turistas variadas formas de cura ou comunicação com o além.

Nesse "trabalho" quem manda é Venerando Vitoria Junior, 54, vulgo Juninho. A sala de cura tem 16 macas, luz azul e toca uma versão de "Memory" (mas sem o vocal de Barbra Streisand). Como dizem que não é preciso ter nada doendo, aceito participar. Mas não relaxo, com medo de roncar como um dos companheiros de uma maca próxima.

Juninho passa de um por um e toca na região do suposto problema físico. Em quase todas, pressiona a região dos órgãos digestivos –o mesmo acontece comigo. O médium diz que nada ouve na hora da cura, nem os roncos. "Não vejo nada. Os espíritos me orientam. Só sei que as pessoas dizem que se curam."

No fim, pedem que os pacientes tomem um "remédio", que parece um copinho d'água. O medicamento, Samantha explica, é água –mas energizada pelos espíritos. "Eles põem o remédio certo para cada um."

EVOLUÇÃO PLANETÁRIA
Samantha e Ailton (e outros caravaneiros excepcionalmente pacientes) viram uma espécie de instrutores do meu intensivão em espiritismo. Uma das teorias que me desperta mais curiosidade é a da vida em outros planetas.

Samantha me ensina que espíritos mais evoluídos são chamados para viver em planetas também mais evoluídos. Segundo a teoria, quanto mais perto do Sol, mais avançado o mundo -o que nos colocaria num bom terceiro lugar na escala de evolução planetária.

Ela chama a atenção para o fato de que nessa área é preciso usar o crivo da razão porque "às vezes, você lê umas maluquices". E como saber que a escala espiritual cósmica não é também uma sandice? "Porque está em 'O Livro dos Espíritos'", esclarece Samantha, sobre o clássico de 1857, escrito pelo pai da doutrina, Allan Kardec.

PACOTE COMPLETO

Se a casa-museu do médium tem o charme do improviso, a grande promessa de atração do roteiro espírita é o Memorial Chico Xavier. Em construção e com inauguração desejada para fevereiro, tem investimento de R$ 6,8 milhões -sendo 10% da prefeitura de Uberaba, e o restante do Ministério do Turismo.

"Já somos a Meca do espiritismo. Mas o movimento turístico, principalmente após a morte de Chico, fez com que várias entidades, como Lions, Rotary e Maçonaria, quisessem preservar sua memória", diz Adalberto Pagliaro Junior, especialista em tecnologia de serviços funerários e presidente do Instituto Chico Xavier, que administra o memorial.

Para compor o acervo do novo museu, o instituto convoca o público a doar fotos, cartas e mensagens. O memorial terá um hotel próprio, o Nosso Lar, com 142 quartos, "para dar mais conforto ao turista espiritual".

O presidente do instituto vê um enorme potencial no crescimento turístico de Uberaba, mas não sonha com a tal Aparecida espírita. "Essa população é muito menor do que a católica [2% dos brasileiros se declaram espíritas, contra 64,6% de católicos, segundo dados do Censo 2010]. Para seguir a doutrina, você precisa de muita leitura, interpretação. Só isso já reduz o número de adeptos."

Chico Xavier, além de médium, era um visionário, diz Adalberto. Ele acredita que Chico, com suas doações a famílias carentes, foi um precursor do Bolsa Família. E ainda teria estimulado a melhoria genética do boi zebu.

Para preservar também o legado de doação do ícone do espiritismo, Adalberto pretende lançar o cartão de crédito do médium -parte da mensalidade seria revertida para instituições de caridade. "Entre seguidores e simpatizantes, temos um universo de 36 milhões de pessoas que poderiam usar esse cartão."

ALÔ, ALÉM

O ponto alto da excursão é o ritual de psicografia. Em resumo, pessoas atravessam a noite numa casa, na fila para serem atendidas por um médium que, talvez, quem sabe, vai psicografar uma suposta carta de um parente querido que se foi. O ritual, da espera à leitura das mensagens, dura de oito a 12 horas, o que leva à lição número três: espíritas são muitos pacientes e gostam de ver para crer.

Às 22h, vamos para o Lar Pedro e Paulo, sede das psicografias de Carlos Antônio Baccelli. Um dos discípulos famosos de Chico Xavier, Baccelli, 61, é também autor de livros como o recém-lançado "Meu Filho Nasceu no Além", que trata de sexo e concepção do lado de lá.

Mas falar sobre procriação de outro mundo não parece ser o objetivo de quem vai passar a madrugada ali. Boa parte das pessoas no local é de uma amabilidade diretamente proporcional às perdas que sofreram: pais que perderam filhos em acidentes, mulheres que enviuvaram antes da hora. Varam a noite, sem conforto e sem reclamar, em busca de consolo. É difícil não se apegar a elas.

Bem no começo da fila, Sônia de Barros, 73, que veio de Dourados (MS) para se integrar à nossa excursão, conta que perdeu o marido para o câncer há dois anos. A relação dos dois foi conflituosa. Numa época, ele se apaixonou por uma mulher mais nova e se foi.

Sonia esperou o marido voltar. "E passamos mais 20 anos felizes."Ela diz que já recebeu uma carta psicografada do marido. Como sabe que era dele? "Não sou muito influenciável, sou racional. Às vezes, penso comigo: 'Como é que eu tô acreditando nisso?' Mas todas as outras cartas falavam de amor. Na minha, ele só pedia perdão."

CANETA BIC E TOLSTÓI

Sol raiando, 5h50, e lá estamos nós de volta para acompanhar a sessão de psicografia. Costuma-se dizer que o médium não pergunta mais do que o nome do "desencarnado", a data de "desencarne" e o grau de parentesco com a pessoa que espera a carta. Mas Sônia conta que passou por uma espécie de entrevista com Baccelli. "Ele fez perguntas demoradas. Quase ficamos amigos."

Às 6h, começa a sessão. Baccelli senta numa mesa e, na clássica posição do médium, uma mão na caneta e a outra cobrindo o rosto, dispara a Bic freneticamente. Uma mulher séria de cabelos grisalhos faz as vezes de viradora de páginas. Vez ou outra, o médium contrai o rosto como se estivesse com dor.

Para entreter o público durante o ritual, que dura duas horas, há uma leitura bíblica, seguida de seis "comentários" e muita música. A atração é o coral espírita do maestro Valdenir Zanetti, de Criciúma (SC), que gorjeia letras como "Quando eu quero falar com Deus, eu apenas falo..." Emocionado, o público aplaude. Uma moça levanta uma placa de silêncio. Um dos comentaristas observa: "Vamos bater palmas com o coração".

"É preciso lembrar que o telefone toca de lá pra cá, e não de cá pra lá", diz um dos comentaristas, reforçando um dos lemas dos espíritas de alma apaziguada. Outro cita Tolstói. Sócrates, Platão e Benjamin Franklin surgiriam em outros comentários ao longo da viagem.

Quando começa a leitura das cartas, vem o anúncio de uma inovação. A leitura era sempre gravada em fita cassete. "Infelizmente, o cassete acabou. Ninguém acha mais", lamenta um comentarista. "Agora, a gente registra no gravador digital e depois manda por e-mail."

O médium lê as mensagens (parando, às vezes, para acentuar uma palavra) e cada família vai até ele, dissolvida em lágrimas, receber o recado do parente que tanta falta faz e beijar a sua mão. Sou do tipo que não aguenta ver gente chorar que já vai chorando junto. Decido contar páginas para conter lágrimas. Em duas horas, Baccelli psicografou 135 páginas em oito cartas, uma média de 17 folhas por mensagem.

Todos os "desencarnados" que decidiram mandar seu alô naquele dia –do adolescente que morreu em um acidente ao senhor que fez um malsucedido transplante de fígado– escrevem meio parecido. Chamam os parentes de queridos. Desejam feliz Natal e ano novo também. Dizem "não chorem", "penso em vocês". Falam difícil: "esqueçamos o câncer prostático que me acometeu".

PROPAGANDA ESPIRITUAL

A única carta que se destaca das outras é a de um jovem que morreu aos 19 anos. No meio da mensagem de apoio aos que ficaram, ele diz que ouviu falar do livro do médium, "Meu Filho Nasceu no Além" –e dá a entender que o outro lado também tem diversão. A família chora. Com o merchandising espiritual, o livro vende como água benta na fila de autógrafos após a leitura das cartas.

Sônia não recebeu mensagem do marido falecido, mas não se diz frustrada. "Valeu a pena. O telefone só toca de lá pra cá. Outra hora vem."

Do lado de fora, Maria Aparecida da Silveira, a Cidinha, uma das mais animadas da caravana, questiona o porquê de se fazer as pessoas, muitas de idade, passarem a noite acordadas à espera de uma possível carta.

"Não usamos senhas para evitar o perigo de comercialização indesejada de lugar na fila", me diz o médium.

Fica consciente enquanto psicografa? "Permaneço no estado de semiconsciência. Não sei o que os espíritos escreverão. Fico sabendo à medida que escrevem." Como os "desencarnados" aparecem todos juntos no mesmo dia e horário? "Eles não vêm por minha causa. Chegam acompanhados pelos familiares, que os trazem de suas cidades."

Todo mundo que morre fica bonzinho? "Eles escrevem sob a orientação dos técnicos do chamado intercâmbio mediúnico. O espírito não deve preocupar os que estão encarnados. Seria contraproducente."

Afinal, do que trata o livro "Meu Filho Nasceu no Além", mencionado pelo jovem espírito em sua carta? "O mundo espiritual é um planeta para onde os espíritos se transferem. Lá também existe afeto, amor", explica Baccelli.

"Como o próprio espírito escreveu na mensagem, de uma maneira muito engraçada: 'O que é que vocês imaginam que um jovem de 19 anos vem a fazer além da morte?'" Quer dizer então que existe sexo do lado de lá? "Sim", ele reluta em repetir a palavra sexo.

Alguma comprovação? "Essa é uma teoria. Na doutrina espírita, nossa fé é lógica. Acreditamos que existe vida no outro lado, por um raciocínio lógico, mas não temos comprovação. Nós acreditamos, mas até hoje a ciência não provou a lei da gravidade."

Ao terminar a entrevista, Baccelli me diz, com o sorriso de quem dá um aviso, que muita perspicácia às vezes faz mal. "Você fica muito racional. Começa a questionar uma coisa e, quando vê, está questionando tudo." (Ia questioná-lo sobre por que isso seria um problema, mas achei que não valeria a pena.). Última lição da viagem: Estude, leia, reflita, exija provas e duvide... Mas não muito.

Mais opções
  • Enviar por e-mail
  • Copiar url curta
  • Imprimir
  • Comunicar erros
  • Maior | Menor
  • RSS

Livraria da Folha

Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Envie sua notícia

Siga a folha

Livraria da Folha

Publicidade
Publicidade
Voltar ao topo da página