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Will Self: 'Para chegar à Londres real, você precisa ser um detetive aplicado'

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Se a economia vai mal, a cultura muitas vezes vai bem —isso era verdade na Viena do "fin de siècle", foi verdade também para a Berlim da República de Weimar e tem sido verdade nas últimas décadas em Londres.

Na minha adolescência londrina, nos anos 1970, uma série de governos ineficazes gerou greves nos serviços públicos e uma sensação de que o fim estava próximo —a Semana de Três Dias, de 1974, e o Inverno do Descontentamento, de 1978, viram lixo se acumular nas ruas, cadáveres insepultos largados nos necrotérios de Londres e racionamento de energia. Foi contra esse pano de fundo que os neofascistas começaram a desfilar e os punks começaram a "poguear" (dançar dando chutes para frente).

Lembro do primeiro show punk que eu vi —foi no Roundhouse, em Camden Town; naquela época (1977), o bairro já era uma região descolada de Londres, mas nada perto do que ainda viria a ser: havia uma feirinha de rua com algumas barracas, e o Roundhouse, um antigo galpão ferroviário, estava cheio de hippies comendo caldeiradas de feijão e ouvindo intermináveis solos de guitarra.

Nessa atmosfera claustral e aromatizada de maconha entraram The Damned e seus fãs: usavam terninhos cinzentos ou calças de sadomasoquismo, tinham o cabelo grudado na cabeça com brilhantina ou cheio de sabão para ficar espetado, transpiravam ameaça, e a música da banda era uma onda de ruído branco em alta velocidade. Meu coração latejava de tanta adrenalina enquanto eles esmurravam acordes e faziam poses feias, desafiadoras. Fiquei encantado: foi amor à primeira vista.

No fim dos anos 1970 e começo dos 1980, Londres era uma cidade suja —as manchas que ficaram nos prédios após um século de fumaça de carvão eram ao mesmo tempo negras e biliares; a neblina cor de sopa de ervilha conhecida pelos leitores dos contos de Sherlock Holmes ainda era uma realidade, e em certas manhãs de inverno eu tinha que tatear meu caminho até a estação local do metrô, com as mãos nas sebes dos jardins.

Diziam que Londres era a cidade mais cosmopolita do mundo —que se podiam ouvir dezenas, senão centenas de línguas sendo faladas em suas ruas tortuosas; mas na verdade a população dessas minorias étnicas atingia apenas cerca de 4%. Mais ainda, Londres tinha perdido 2 milhões de pessoas desde a Segunda Guerra, e aquelas ruas muitas vezes causavam a impressão de estarem cavernosamente vazias além de escuras e sujas.

O punk foi a reação musical a essa cidade moribunda: uma descarga elétrica que pretendia fazer renascer o Frankenstein de 2000 anos de idade.

De 1977 até a metade dos anos 1990, na medida em que o número de desempregados subia e caía, vieram também sucessivas reações culturais: o movimento punk foi sucedido pela new wave e aí pelos new romantics, que por sua vez cederam as pistas de dança para as
raves do acid house.

As drogas caíram pesado sobre Londres; ricos refugiados da revolução iraniana trouxeram seu dinheiro da maneira mais portátil que existia: heroína. Enquanto isso, a comunidade afro-caribenha crescia -­-os distúrbios de Brixton, em 1981, foram reação ao policiamento racista, mas a cultura da ganja e do reggae estava mesmo assim chegando ao mainstream.

No restante da Inglaterra sempre houve uma grande tensão em relação a Londres —desde os tempos medievais havia a preocupação de que "o Grande Fruncho" (ou furúnculo), como a cidade era conhecida, fosse absorver todo o país com suas ruas pululantes e purulentas. De minha parte, eu acolhia a ideia de braços abertos: com uma infância isolada em uma família desfeita, passei a considerar a própria Londres como minha mãe, uma grande presença uterina em que eu podia vagar à toa, buscando consolo em saguões de hotéis, museus e parques.

Eu sempre achei que ia sair de Londres, mas meu pai emigrou em 1980, meu irmão foi embora no meio dos anos 1980, e minha mãe morreu em 1988, me deixando com a cidade; agora eu já moro aqui há tanto tempo e já me envolvi tão intimamente com Londres que não posso imaginar estar em outro lugar —e isso apesar do fato de a vigorosa relação entre cultura e declínio agora parecer ter se rompido.

Durante a última grande recessão, na primeira metade dos anos 1990, a reação cultural veio das artes visuais e não da música popular; os assim chamados "jovens artistas britânicos" ocuparam prédios comerciais vazios e fábricas abandonadas e transformaram esses espaços em galerias. A arte de Damien Hirst, Tracey Emin e dos irmãos Chapman era uma agressiva fusão de conceitos elevados e táticas baixas —ela brotava direto da sarjeta para cobrir uma mesa do Groucho Club, ou do Ivy, ou de qualquer um dos milhares de restaurantes elegantes que começaram a abrir em Londres quando a recessão cedeu espaço a uma bolha financeira.

Esses artistas foram a última onda criativa que teve algum impacto real no mainstream cultural, porque, desde o fim dos anos 1990, dois fenômenos inter-relacionados começaram a alterar Londres de maneira sistemática e profunda: se a recessão um dia fez bem para a cultura da cidade foi porque seus efeitos eram compartilhados, mas, desde que a economia passou a ser dominada pelo capital financeiro internacional, isso não acontece mais.

O NOVO VEM DE FORA

A Londres dos restaurantes e clubes endinheirados, dos casamentos reais e dos 200 novos arranha-céus atualmente em construção não é aquele mesmo lugar unificado: agora temos finalmente uma cidade legitimamente cosmopolita —em alguns distritos centrais da cidade as minorias étnicas já compõem 50% da população.

Mas muitos dos imigrantes são ilegais ou vieram de regiões mais pobres da União Europeia só para trabalhar. E o trabalho que eles fazem atende às necessidades dos super-ricos, muitos dos quais —oligarcas russos, milionários chineses e do sudeste da Ásia, xeques do Oriente Médio— vêm também de fora.

Depois do colapso financeiro de 2007/2008, Londres entrou em recessão por uns poucos meses; um mercado imobiliário cada vez mais valorizado levou a uma cidade dividida, na medida em que os pobres se veem exilados nos pontos mais distantes.

A cidade de hoje certamente parece mais limpa —não há neblina com jeito de sopa, prédios antigos foram escovados e novos brilham como espelhos; há muita cultura em oferta, mas trata-se de cultura vista como mercadoria, não como um fruto autêntico do espírito da cidade.

Ainda assim, não sou um pessimista quanto a Londres; a principal coisa a respeito da cidade é que ela é essencialmente ingovernável —só isso explica porque o prefeito atual (Boris Johnson) parece ser uma figura tão estranha e patusca (o fato de que a prefeitura não tem qualquer poder real ajuda).

Vai acontecer alguma nova explosão cultural, e ela quase certamente virá de imigrantes que chegaram há pouco. Os jamaicanos já misturaram seu sotaque com o "cockney" local de modo que o sotaque da cidade —chamado de "jafaican"— tem agora uma nítida musicalidade caribenha somada a suas arestas tradicionais.

A Londres que se anunciou triunfalmente para o mundo na Olimpíada (em 2012) não era a cidade real —exatamente como nós, os londrinos, não somos todos reis e rainhas de nácar. A Londres real não pode ser descoberta por turistas despejados agora nos novos bairros da moda, no East End: você precisa ser um detetive mais aplicado para chegar a ela; e no entanto ela está aí, e você pode muito bem começar por onde eu moro, em Stockwell, que tem grande comunidade de falantes de português.

WILL SELF, 53, é escritor e jornalista londrino, autor de "Como Vivem os Mortos" (2000) e "O livro de Dave" (2006). Foi finalista do Booker Prize de 2012 por "Umbrella".

Tradução: Caetano Galindo

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