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Serafina

Fã de tango e futebol, papa reunia criançada para ver 'Guerra nas Estrelas'

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Durante a missa na Basílica de São Pedro, o papa, um pouco rouco, assoa o nariz. Francisco está resfriado.

Mas isso pouco afeta a cerimônia. O argentino mantém o ritual como é de costume. Em vez de abençoar o público, ele se despede dos presentes com o que já se tornou uma das fórmulas de seu papado: "Bom dia, bom almoço e não se esqueçam de rezar por mim".

Zed Nesti

É a simplicidade presente também na vitrine de uma loja de badulaques na via della Conciliazione, diante da basílica. Nos cartões-postais, João Paulo 2º apoia a cabeça nas mãos delicadamente. Bento 16 dá um meio sorriso com os olhos arregalados, contornado por uma capa esvoaçante. Francisco toma chimarrão e faz joinha. As imagens sinalizam a distância entre o atual papa e seus antecessores.

Nascido Jorge Mario Bergoglio em 1936, em Buenos Aires, fã de tango e torcedor do San Lorenzo, Francisco foi eleito sumo pontífice em março de 2013, substituindo o pouco carismático Bento 16, que acabara de renunciar ao posto.

Assim, já um senhor de 76 anos, o jesuíta argentino assumiu uma tarefa digna de santo: liderar uma igreja com 1,2 bilhão de fiéis no mundo, mas manchada por escândalos de corrupção e pedofilia e que já há algum tempo não empolgava as multidões.

Seguir o rastro da batina de Francisco pela Santa Sé e entender como esse papa vindo do "fim do mundo", nas palavras dele próprio, busca transformar —e transtornar— a Igreja é também um trabalho difícil.

Arte Serafina

A histórica reconciliação entre Cuba e os Estados Unidos, em dezembro, teve um personagem central: Francisco. Tanto Raúl Castro quanto Barack Obama agradeceram especialmente ao papa pelo esforço pessoal na mediação. Francisco havia enviado cartas a ambos. O resultado, um feito e tanto para a diplomacia papal, é um entre diversos exemplos de seus grandes gestos.

Francisco apontou o dedo para seus pares, em sua mensagem de Natal, e falou sobre as "doenças" que atingem a Cúria Romana, como "alzheimer espiritual" e "esquizofrenia existencial". Acusou seus membros de serem "dependentes de seus próprios caprichos e manias" e de terem "rosto fúnebre" quando o religioso deveria ser "uma pessoa amável, serena, entusiasta e alegre". Sugeriu mais tolerância a gays e trouxe à discussão assuntos que ainda são tabu na Igreja (e fora dela), como a amamentação em público.

O argentino tem insistido desde o início de seu papado em ideias que pareciam não combinar com a Santa Sé: uma igreja pobre para os pobres, próxima de seus fiéis e menos pomposa. Ele abriu mão do carro oficial, adotando um Ford Focus azul metálico em vez do Mercedes-Benz, entre outras medidas.

CAIXINHA DE SURPRESAS

Apesar da simplicidade de suas maneiras, falar com Francisco é quase impossível. "A resposta padrão é não", diz o simpático padre Ciro Benedettini, 68, vice-diretor de imprensa do papa, em seu escritório no Vaticano (que se parece mais com uma sala de professor universitário do que com a pompa bizantina que se podia imaginar). "Sempre negamos os pedidos de entrevista com Francisco", diz o enérgico assessor, com inglês fluente e um sorriso.

Nenhuma argumentação da Serafina convence esse padre. Se já era complicado entrevistar um papa no passado, é mais ainda agora com esse, que tem ares de estrela de Hollywood e abre espaço em sua agenda para encontrar gente como Angelina Jolie, Russell Crowe e Messi. Os pedidos de jornalistas para viajar em seu avião, onde costuma responder a perguntas de repórteres, aumentaram em 33%.

Em 2014, 6 milhões de pessoas foram às missas e outras aparições dele no Vaticano -quase três vezes mais do que mobilizou o antecessor, Bento 16, em 2012. No dia 18 de janeiro, ele reuniu outros 6 milhões em uma missa em Manila, capital das Filipinas, e bateu o recorde de público para um evento com a presença do papa (a marca anterior era de João Paulo 2º, que levou
5 milhões ao mesmo local).

"Com Bento 16, era tudo regrado. Agora, é cheio de surpresas", diz o padre Benedettini. "Há essa proximidade com as pessoas, que no começo nos chocou. Nas ruas, qualquer um abraça o papa, e ele gosta."

Arte Serafina

Com as portas divinas fechadas na cara da reportagem e a possibilidade de um abraço bastante remota, o próximo passo é visitar a Casa Internacional do Clero, hotel onde Francisco se hospedava em Roma antes de virar papa. Mas a recepção por ali tem ares pouco papais.

Funcionários rudes pedem que o repórter se vá dali. Sentados atrás do balcão, enquanto fazem o check-in de um grupo de sacerdotes, eles repetem: "Não. Não. Não". Ninguém quer conversar com a imprensa. Não foi possível ver o quarto em que Jorge Mario sempre dormia, o de número 203.

Difícil também é traçar um "roteiro de Francisco". Bergoglio não deixou um rastro marcante em Roma antes de se tornar papa. Quando ia à capital italiana, fazia das visitas assunto de negócio. Não passeava, só trabalhava.

Arte Serafina

Nada de "o café preferido do papa" ou "a massa predileta do sumo pontífice" em um beco romano.

Se não deixou marca nos lugares que visitou, porém, Francisco impactou as pessoas que conheceu. É da conversa com esses personagens que vêm alguns detalhes: o santo padre acorda antes do nascer do Sol, come rápido, gosta de tango e é pontual.

"É um homem muito espontâneo. Chega a ser desconcertante", diz o sacerdote Antonio Pelayo, 70, assessor religioso da embaixada espanhola e repórter especializado na Santa Sé (os chamados "vaticanistas").

GAÚCHO POPULISTA

Pelayo se lembra de quando Francisco lhe deu um rosário. O espanhol disse que dedicaria ao sumo pontífice a primeira reza com a lembrancinha. Bergoglio lhe deu um soco no ombro e disse: "A segunda e a terceira também. Não seja tacanho!"

O vaticanista teve um longo contato com os antecessores de Francisco. "João Paulo 2º também saudava as pessoas uma a uma, mas ele lhe dava a mão enquanto já olhava para o próximo."

"Francisco acabou com a imagem de que o papa é um faraó e o Vaticano a sua corte", diz Pelayo. Não à toa há aqueles que, na Santa Sé, lhe acusam de "dessacralizar" a imagem do sumo pontífice. Pelos corredores, chamam Jorge de "gaúcho populista" e de "argentino" —em tom pejorativo. Entre as alas mais conservadoras, suas modernizações e reestruturações têm causado desconforto, e se diz também que as mudanças na Igreja são mais marketing do que teologia.

Um de seus gestos mais impactantes entre as medidas de austeridade foi recusar a residência papal, onde viveram seus antecessores, e decidir morar na Casa de Santa Marta -uma casinha a poucas centenas de metros do Vaticano. A Serafina visitou o lugar por fora com autorização especial do Santa Sé. Entrar? Não vai ser dessa vez.

"Alguns aprovam ele morar aqui, outros não", resmunga um funcionário mal-humorado e de respostas atravessadas, destacado pela Santa Sé para levar a reportagem até ali por poucos minutos. "A residência oficial é outra. Mas ele é o papa, faz o que quiser."

"Muita gente não apoia o que Francisco faz. Dizem que ele está próximo demais do povo. Bento 16 era muito distante, mas o melhor é ficar no meio, como João Paulo 2º."

Arte Serafina

"GUERRA NAS ESTRELAS"

Mas o povo faz parte da biografia do papa Francisco, e ele aprendeu com a avó Rosa (que lhe dizia que "os sudários não têm bolso") a abrir mão do luxo material. Cresceu em uma família de classe média, em Buenos Aires.

Lá, virou arcebispo e fez história ao levar a igreja até as "villas", as favelas da capital. "Nos anos 1990, ninguém se importava, além dele", diz o padre Pepe, 52, um dos líderes do movimento "villero". "Para ele, o lugar dos sacerdotes era na periferia, e não na catedral. Era onde ele gostava de estar."

Pepe, uma das pessoas mais próximas de Francisco nos tempos de Buenos Aires, garante: "Ele é no Vaticano a mesma pessoa que era aqui. Até melhorou, porque se comunica melhor. Na Argentina, não falava tão bem em público".

Mas falava bem com as pessoas. O autodeclarado "devoto de Francisco" Daniel López, 41, recebeu a primeira comunhão de Bergoglio em 1982. Criado por jesuítas, em um bairro pobre da capital, Daniel frequentava desde pequeno a paróquia de San José, fundada pelo futuro papa. "No Dia das Crianças, ele nos dava brinquedos, chocolate quente, nos levava para ver filmes -não só as histórias de Abraão e Isaac, mas também 'Guerra nas Estrelas'", diz. Daniel lembra que o papa Francisco levava as crianças para acampamentos no litoral, "para que a gente visse o mar pela primeira vez". "Ainda me custa chamar ele de papa. Para mim, é o padre Jorge."

Outra pessoa que tem lembranças desses dias portenhos é o rabino Abraham Skorka, 64, hoje uma das figuras mais próximas do papa e sua companhia na histórica viagem à Terra Santa, em 2014. Ali, Francisco transformou em lugar de oração o muro que separa Israel da Cisjordânia, em um forte gesto -em diversas ocasiões, ele pediu que pontes, e não barreiras, sejam construídas entre as comunidades.

Abraham conta que a amizade começou em um evento quando Jorge Mario, então arcebispo, lhe provocou com uma piada sobre o River Plate, time do rabino. O papa torce para um clube rival, o San Lorenzo. Skorka lhe disse que seu comentário era "veneno". E um sacerdote presente lhe repreendeu por usar aquela palavra ali. Bergoglio retrucou: "Mas estamos falando de futebol!"

"Todas as barreiras se quebraram quando ele deixou de lado o protocolo", diz Skorka. A partir de então, os dois religiosos passaram a debater sobre fé, morte, ateísmo, aborto, fundamentalismo. As conversas resultaram no livro "Sobre o Céu e a Terra", assinado pela dupla.

Arte Serafina

"O papa é produto da realidade argentina. Ele sabe que tem de estar com os necessitados, e não apenas pela história argentina, pelo populismo de Juan Perón. Seu exemplo é Jesus."

O jornalista português Henrique Cymerman, 55, próximo a Francisco, é uma das raras pessoas que esteve no quarto do santo padre, no Vaticano, que ele descreve como "um pequeno apartamento que parece um hotel três estrelas dos anos 1970".

"Francisco é criativo e aberto, um homem do século 21. É também um estadista. Pensa em todas as consequências de seus atos, e não acredita em burocracias", diz o jornalista. "Ele simboliza o fim do papado medieval." Henrique conta ainda que o papa "come em 15 minutos". Francisco diz que, enquanto houver pessoas sofrendo no mundo, ele não tem tempo a perder.

Filippo Monteforte/AFP
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