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Capital argentina muda de cara em meio a protestos por preservação

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Muitas coisas aconteceram a Francis Ford Coppola quando viveu em Buenos Aires alguns anos atrás. Rodou "Tetro", um filme cult em preto e branco nas ruas de San Telmo, abriu um hotel chamado Jardin Escondido, em Palermo Soho, e foi visto durante tardes seguidas trabalhando com seu laptop no Bar Británico.

Como o cineasta americano, muitos artistas e intelectuais deixaram gravadas nas ruas de pedra, nos casarões, nos restaurantes e cafés da capital argentina seu entusiasmo por essa cidade romântica, criativa, boêmia e conturbada. Considerá-la parada no tempo, porém, é um equívoco. Novidades urbanísticas e arquitetônicas mudaram a cara de Buenos Aires na última década. Se por um lado houve projetos para incorporar e manter o antigo nas novas instalações, muitos edifícios, hotéis e teatros históricos, infelizmente, foram ao chão.

Ainda é possível passear pelas mesmas esquinas da Recoleta em que o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) criou "Fervor de Buenos Aires" e pelas vielas que circundam o parque Lezama, onde Ernesto Sabato (1911-2011) ambientou "Sobre Heróis e Tumbas". Também segue firme o quarto do hotel Castelar, onde o espanhol Federico García Lorca (1898-1936) hospedou-se para a estreia portenha de um de seus clássicos, a peça "Bodas de Sangue", em 1933.

Andar por Buenos Aires é, ainda, transitar pelo cinema argentino. A praça de Maio das manifestações pela volta à democracia, de "A História Oficial", primeiro filme local a levar o Oscar de filme estrangeiro, em 1986. As escadas dos tribunais, que Ricardo Darín sobe para encontrar sua amada, em "O Segredo de Seus Olhos", vencedor do mesmo prêmio, em 2010.

Mas, se as artes retratam a história da cidade, as agências de viagens insistem no clichê "capital europeia da América Latina" e vendem um glamour aristocrático que é representativo apenas de uma parte dessa sociedade.

"Essa Buenos Aires que habita o imaginário do estrangeiro tem a ver com a classe social que enriqueceu com a exportação de carne entre os anos 1920 e 1940 e levantou aqui palacetes e mansões como os da Europa", explica o historiador argentino Álvaro Abós.

Na época, ficou popular na Europa a expressão "rico como um argentino", pois, sem saber como gastar suas fortunas, os novos milionários compravam coleções de arte que guardavam em casa mesmo. Hoje, muitas delas estão em exibição, como a coleção Amalia Lacroze de Fortabat, em Puerto Madero.

"Mas a cultura portenha é outra. Vem mais dos imigrantes menos abastados que construíram uma nova vida aqui. A mistura dessa influência com o elemento local é o que se vê nas ruas e nas artes, na literatura e no cinema", explica Abós.

REVOLUÇÃO URBANA

O turista que foge do pacote tradicional, geralmente composto por compras na rua Florida, shows de tango comercial e restaurantes de carne, surpreende-se com uma cidade moderna.

Na última década, na carona de uma onda de crescimento do PIB do país (quase 8% ao ano), Buenos Aires construiu novos espaços e resgatou prédios antigos. Animadas pelo "boom" de gastronomia e moda vivido pelo bairro de Palermo nas últimas décadas, outras áreas da cidade têm visto suas ruas, antes apenas residenciais, encherem-se de lojas, bares, restaurantes e galerias. É o caso de Villa Crespo, onde se refugiaram o público e os chefs que se cansaram dos lotados restaurantes de Palermo.

Outro bairro que renasce é Barracas, luxuoso no passado, mas abandonado pelos proprietários ricos depois que uma epidemia de febre amarela assolou a cidade no fim do século 19. Foi redescoberto por artistas e pequenos empresários em busca de aluguéis mais baratos e mantém muitas de suas ruas com paralelepípedos. As casas de luxo foram transformadas em lofts, disputados por solteiros e estrangeiros de passagem pela cidade. Ainda é possível ver ali também os chamados "almacenes" (mercearias), antes comuns em toda Buenos Aires, hoje praticamente em extinção.

Um dos símbolos desses novos tempos no bairro é o Centro Metropolitano de Diseño. Em seus grandes galpões, realizam-se feiras e eventos onde podem-se conferir as últimas criações de jovens arquitetos e designers.

Outro exemplo recente da nova relação dos portenhos com o passado arquitetônico da cidade é a Usina del Arte. Desenhada em 1914, o imenso edifício neorrenascentista florentino funcionou como a Companhia Ítalo- Argentina de Eletricidade até 1990. Em 2012, foi reinaugurado, com duas salas de espetáculos.

"É um exemplo de aproveitamento útil e poético para um prédio como esse. Na Europa, muitas dessas usinas foram derrubadas. Aqui, vemos o que se pode fazer numa delas", diz o turista dinamarquês Morten Bjelland, 43.

"Há jazz, tango, chamamé [música folclórica] e pop na programação. A ideia é ser variado, internacional, mas marcado pelas referências sonoras da região do rio da Prata", diz Gustavo Mozzi, compositor e diretor da Usina.

Mas nem tudo são bons exemplos. Os trens da primeira linha de metrô de Buenos Aires, que operavam desde 1913 e eram os pioneiros da América Latina, não resistiram ao ímpeto modernizador. Foram substituídos, sob protestos de parte da população, por outros comprados da China.

Num galpão da periferia, os vagões esperam um destino. "Tem gente indo lá e roubando-os, aos pedaços. Primeiro, foram as lanternas, depois os detalhes das janelas. Eles estão sendo depenados", conta a ativista Maria Carmen Arias.

Ao lado de Santiago Pusso e Carlos Blanco, Maria Carmen comanda a ONG Basta de Demoler, criada em 2007 para tentar conter a destruição causada pela expansão imobiliária.

Através de campanhas pelas redes sociais e ações na Justiça, o grupo já obteve vitórias importantes, como salvar o Teatro Picadero, no centro, e obrigar a prefeitura a mudar a entrada de uma estação de metrô que derrubou árvores centenárias na Recoleta.

O Basta de Demoler agora tenta manter de pé a igreja de Santa Catalina, construída em 1745 e o edifício colonial mais importante ainda de pé na cidade. "Estou aqui só para fotografar os prédios do século 18 de Buenos Aires, e este de longe é o mais bonito", diz o fotógrafo alemão Hans Stegen, 32, em frente à igreja.

CANTEIRO DE OBRAS

Um dos locais mais visitados por brasileiros também passa por reformas. O Malba (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), que exibe a tela "Abaporu", de Tarsila do Amaral (1886-1973), prepara o lançamento de um novo anexo. Este passaria por baixo da praça ao lado do museu. "Isso vai tornar a região dos bosques de Palermo ainda mais interessante para os passeios de portenhos e estrangeiros", diz o empresário Eduardo Costantini, proprietário do museu e fã da arte brasileira, que já realizou ali retrospectivas de Adriana Varejão e Beatriz Milhazes, entre outros.

Quem visitou Buenos Aires há mais de cinco anos certamente tomará um susto ao chegar. A avenida 9 de Julho, importante cartão-postal, hoje tem corredores de ônibus no meio da via, que tapam a visão panorâmica que antes se tinha.

"A gente chega mais rápido ao trabalho, mas não sei se vale a pena perder essa vista. Daqui onde estamos, por exemplo, não dá para ver o Obelisco", diz, consternado, o estudante Santiago Díaz, 22. Os corredores causaram também a derrubada de árvores plantadas ali em 1983, para celebrar a volta da democracia, após sete anos de regime militar.

Quem visitar a cidade hoje também notará que os portenhos têm falado mais português. O aumento do turismo e a presença forte do Brasil na economia argentina causam uma busca maior por cursos e professores da nossa língua. Ainda cometem equívocos, claro, principalmente quando tentam soar muito modernos.

Num sábado de janeiro, um jovem guia recebeu assim um grupo de turistas brasileiros de terceira idade, na entrada de um restaurante da Recoleta: "E aí, galera? Vamos entrar que aqui dentro a coisa está irada!" Dona Rosângela, 71, e seu Walter, 74, riram condoídos. "Parece meu neto, que fala português e eu não entendo nada", disse ele.

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