Serafina
Colunista contrapõe ideais de paz com vontade de agredir vizinhos 'folgados'
Um grupo de jovens fanáticos e alienados, membros de uma minoria étnica cada vez mais segregada, sai matando civis inocentes pelas ruas de Paris. A reação imediata da Europa é um golpe de gênio: bombardear a Síria, bombardear ainda mais o Iraque! Quem se importa se mais civis inocentes vão morrer do lado de lá? Será que, só para variar, a estratégia não poderia ser mais sofisticada e incluir um pouco de autocrítica?
O clima de medo e raiva nas ruas da Europa me fez lembrar que, há alguns meses, por muito pouco não enchi meu vizinho de porrada —aquele mesmo beócio inglês que mora embaixo e que, por sua agressividade de cunho "passivo-blairniano" tão tipicamente britânica—, já foi tema desta coluna. Desta vez, ao berrar com meu filho de oito anos, fazendo-o chorar por causa de uma bola que caiu em seu jardim, ele se esqueceu do bom-mocismo e ultrapassou a tênue linha que separa o vandalismo da civilização.
No Bom Retiro, bairro paulistano onde cresci, não se deixava nada barato. Esse meu lado falou mais alto aqui em Londres. Fui para cima do vizinho com o dedo em riste e pronto pra briga. Disse que, se ele ousasse gritar novamente com qualquer membro de minha família, eu faria ele aprender uma dura lição. Ainda bem que o asno recuou para sua toca em silêncio. Meu punho já estava cego e fechado.
Ilustração Caco Neves | ||
A incoerência de ir a uma manifestação contra bombardeios na Síria e a vontade de socar a cara de um sujeito grosseiro |
Sou pacifista de carteirinha. Assino toda e qualquer petição contra a indústria armamentista e, semana passada, estava em Downing Street (onde fica a residência oficial e escritório do primeiro-ministro britânico) em uma manifestação contra os bombardeios na Síria. Mas, como posso manter meu ideal de paz e amor para o mundo e ao mesmo tempo quase enfiar a mão na cara de um vizinho na frente do meu filho?
Não tenho a menor ideia. Mas não seria de se esperar que, em sua instância de representação coletiva, a instituição "governo" num país democrático não aja como um indivíduo irracional, agressivo e imprevidente?
Não, não seria. O dinheiro faz parte desta terrível narrativa. A França, quarto maior fabricante de armas do mundo, exportou em 2015 o equivalente a 15 bilhões de euros (R$ 62 bilhões) em armamentos e a maioria de seus clientes está no Oriente Médio. Hospitais, escolas e serviços públicos franceses são mantidos com dinheiro sujo de sangue. Com todo respeito e pesar pelas vítimas em Paris, ao ouvir "A Marselhesa" esses dias senti vontade de vomitar.
E pensei em presentear o meu vizinho com um panetone neste Natal.
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